PERDIÇÃO,
ENTRE A REDE
DA FAMA E O RIO DE LAMA
Luciene Lemos de
Campos
O escritor Luiz Vilela (Ituiutaba,
Minas Gerais, 1942), formado em Filosofia, tendo atuado como jornalista e
alcançado a consagração literária como contista, presenteou-nos, aos leitores
brasileiros, neste final de 2011, com um romance grandioso: Perdição.
A obra, em linguagem simples,
coloquial, revela, no entanto, profundos conhecimentos linguísticos,
filosóficos, religiosos e literários, entre outros. Perdição mescla comédia e tragédia, humor e
ironia ácida, mestria na utilização do diálogo e domínio da arquitetura
romanesca. Jogos e brincadeiras com as palavras, simplicidade e precisão
vocabular, peculiares aos seus contos e presentes em suas novelas, tem neste
seu quinto romance nuances novas no âmbito da sua ficção.
Luiz Vilela busca, no repertório de
signos socialmente construídos, palavras que desvelam uma sociedade
pseudomoralista movida por interesses disfarçados de valores éticos, morais,
religiosos e de falsos bons costumes. O autor também delineia, através das
falas das personagens, o quanto pensamento e linguagem refletem a realidade de
uma forma diferente da percepção daqueles que não conhecem os códigos, seus
signos e seus símbolos.
Leo, o protagonista, é amigo de
infância do narrador, o jornalista Ramon. O romance avança pelo diálogo de
Ramon com diversas personagens que convivem no dia a dia de uma pequena cidade
fictícia do interior de Minas (mas poderia ser qualquer cidade do país, até
mesmo um bairro distante incorporado a alguma região metropolitana). Ramon ouve
as histórias e, ao mesmo tempo, revela que a retórica, os signos e símbolos —
as palavras, enfim — desempenham um papel central no comportamento das pessoas,
atingindo de forma mais cruel, e irônica, aqueles que não são capazes de
decodificá-los.
A trajetória de Leo, no relato
feito pelo narrador, enreda-se nas histórias das demais personagens de Perdição
e ao fluxo histórico de sua pequena cidade. A narrativa, para tanto, remete a
figuras da mitologia local no mesmo passo que dialoga com grandes obras da
literatura mundial. E, no âmbito da poética de Luiz Vilela, dialoga com grandes
obras da literatura mundial e retoma motivos que são recorrentes na obra do
escritor.
Nesse diapasão, surgem no enredo,
entre outras e muitas personagens, a dona da pensão, o vendedor do disk-peixe,
o dono do jornal, os feirantes e a mulher do protagonista: ela, Gislaine,
passará por uma grande transformação e suas atitudes surpreenderão ao leitor.
Também surgem figuras da política
local, em dois diferentes momentos históricos, entre os quais pontificam os
prefeitos, os vereadores, os vigários e outras personagens da elite de Flor do
Campo, pois este é o nome da pequena cidade ficcional criada por Luiz Vilela.
Das personagens da mitologia
popular, ganham destaque uma cobra inspirada na Cobra Norato, a Moçalinda e o
Jacaré Papudo.
Entre os grandes da literatura
mundial, e inúmeros são de algum modo invocados em Perdição, mencionemos
aqui, a título de exemplo, Homero, Virgílio e Rostand, além da Bíblia, motivo
recorrente ao longo de toda a narrativa.
Quanto aos motivos recorrentes da
literatura do próprio Luiz Vilela, observamos que se presentificam, entre
muitos outros, o amor, o erotismo, a religião e o riso literário.
Desse conjunto de características que
enunciamos, temos a palavra como o centro irradiador da potência da escrita de
Vilela. A palavra é um signo verbal por excelência, e Luiz Vilela a emprega
magistralmente.
Isso porque Luiz Vilela é um mago
que manipula a linguagem e
une o clássico, o moderno e o contemporâneo em um enredo com ares de ingênuo,
mas profundamente sofisticado em sua aparente simplicidade, pois tempera a
fábula encenada com a boa prosa mineira.
Nesse universo, que se vê invadido
por modismos globalizados, a reflexão de Vilela é vigorosa, desmistificadora de
um Brasil em que a barbárie sucede à barbárie sem nenhum intervalo
civilizatório e em que, à pobreza extrema, sucede, sem maturação social, um
consumismo desenfreado, irreflexivo.
Ao enredar temas universais como fama,
irracionalidade e nulidade humanas, o autor propicia reflexões acerca do “ser
alguém” e do “não ser ninguém” em uma sociedade cada vez mais dragada pela rede
da fama.
.
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Nesse contexto, com uma passagem do
Apocalipse, Vilela encerra a narrativa: “E deus limpará de seus olhos toda
lágrima, e não haverá mais morte, nem pranto, nem clamor, nem dor.” Isso
porque, na Babel-Babilônia da luta pela fama e da guerra pelo dinheiro e pelo
enriquecimento, a personagem central de Perdição encontra um rio de lama e um
universo de dissolução, prelúdios do seu próprio fim.
Com enredo aparentemente simples e
banal, a obra propicia reflexões — inquietas reflexões — acerca da arte de usar
as palavras e sobre a religião, o homem, o sexo, a sedução e a hipocrisia,
fazendo de Perdição leitura imperdível para quem aprecia a boa literatura.
Nesse sentido, o livro é, também,
um belo presente de Natal, por ser um ótimo presente, a qualquer momento do
ano, para as pessoas a quem realmente queremos bem.
Luciene Lemos de Campos, Mestre em Estudos Fronteiriços
pela UFMS, com o estudo “A mendiga e o
andarilho: a recriação poética de figuras populares nas fronteiras de Manoel de
Barros” (2010), e ingressante (2012) no Mestrado em Letras da UFMS, Câmpus
de Três Lagoas, é professora de Língua Portuguesa na SED/MS; lucienelemos10@yahoo.com.br.
Nota de 27 dez. 2011 - versão anterior e condensada desta resenha foi publicada hoje em:
CAMPOS, Luciene Lemos de. Perdição, um belo romance. Diário Corumbaense, Corumbá, MS, ano V, nº 1148, 27 dez. 2011, p. 2, seção Artigo. Disponível em < http://www.bancadigital.com.br/dcorumbaense/reader2/ >.
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