domingo, 4 de dezembro de 2011

PERDIÇÃO: Resenha - 1

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A DIVINA PERDIÇÃO
O épico bíblico de Luiz Vilela


Perdição
Luiz   Vilela
Romance, 2011
400 páginas
Ed. Record
R$ 39,90

 
Chega às livrarias, nesta semana, o romance Perdição, de Luiz Vilela. Chamar ao caudaloso volume pelo gênero trivial dos manuais de teoria literária desserve ao livro e ao leitor. Trata-se de um épico monumental, e esse é o seu primeiro paradoxo, pois — diferente das normas da epopeia, que preceituam personagens principescas — expõe a vida de personagens comuns para assim representar, refletir e problematizar seu tempo e seu país.
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Ao menos há duzentos anos os estudiosos condenaram a modalidade inaugural da épica, a epopeia, à inanição, considerando-a inadequada como estética para exprimir o burguês capitalista, a sociedade industrializada e um imaginário a-mítico. Como narrativa, ficou a épica reduzida ao romance, sem o sopro totalizador que configura o significado da palavra. Entretanto, Luiz Vilela se vale de sua prodigiosa capacidade de ficcionista e de escritor para contrariar os manuais e realizar, com pertinência, o que parecia incabível.
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Mas não se trata só de um épico, a que em justificado pleonasmo qualificamos de monumental: é um épico bíblico, ou, como já adiantara o próprio Luiz Vilela, em uma entrevista de 2005, um épico de inspiração bíblica. E, sendo assim, mais ainda parece obra anacrônica em tempos de materialismo disseminado nas relações sociais e interpessoais, restando — no âmbito da subjetividade — um vago e raso espiritualismo que mascara em hipocrisia o egoísmo que lateja dentro de cada ser humano.
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Não se trata, e não é o que se pretende expressar, de uma epopeia ou de uma épica nos moldes aristotélicos, nem sequer na configuração hegeliana: diante do mundo fragmentário, do universo dissoluto e de homens coisificados; diante do maravilhoso que se esvaiu de sentido, do transcendente inalcançável e do heroísmo que é apenas propaganda enganosa; diante de globalização que atomiza, da ética vitoriosa do amoral e da violência tornada cotidiana, corriqueira e socialmente vista como aceitável — diante da sociedade ocidental em sua expressão brasileira na virada do segundo para o terceiro milênio, Vilela forja um romance que resgata o ethos de uma narrativa épica.
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Ao construir um épico fundado no intertexto bíblico, Luiz Vilela, por um lado, desvela um tempo em que a religião tornou-se simulacro espelhando efetiva não-religiosidade, e, por outro lado, encena sua fábula como que em cronotopo de exemplaridade, fazendo-a ressoar, no aqui e no agora do Brasil do início do terceiro milênio, o homem em suas fragilidades, angústias, grandezas e mesquinharias de todos os tempos e de todos os lugares.
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Dizer que se trata de um épico e qualificá-lo de inspiração bíblica, no entanto, ainda não é fazer justiça à obra, mesmo sendo o romance bafejado por tal inspiração e tendo tal sopro épico.
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Expliquemo-nos. Trata-se, Perdição, de narrativa que se faz, ao mesmo tempo, fundadora e alexandrina: é fundadora ao ter em si, e os desvelar ficcionalmente, as bases e os fundamentos do Brasil que se faz, após quinhentos anos de existência, nação que começa a se realizar na democracia interna e na autonomia diante das antigas potências metropolitanas; e é alexandrina ao, do mesmo modo, ter em si e os desvelar, por intermédio da criação ficcional, o caótico momento em que o modelo e a estrutura da sociedade ocidental capitalista se exaurem quanto às promessas que fez para a ascensão burguesa, embora tenha, o capitalismo burguês, entremeio suas contradições e em sua camaleônica capacidade de mimetizar e de se transformar, fulminado as utopias que pretendiam rendê-lo e substituí-lo. Desse modo, o romance de Luiz Vilela exala uma esperança desesperançada.
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Para ser fundadora, a narrativa se erige como uma parábola, como se fizesse da famosa passagem de Mateus (16: 18) o ponto de partida do romance: “E eu digo-te que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as portas do inferno não prevalecerão contra ela”. Se Cristo assim se dirige a Pedro, o protagonista de Perdição recebe chamado similar, em intertexto com o momento em que Jesus conhece Pedro e o chama para deixar de ser pescador de peixes e se tornar um pescador de homens (ver Mateus 4: 18-20 e Lucas 5: 1-11). Ao mudar de identidade, a personagem desliza — a seu ver — de sua condição mundana, terrena, para se realizar como um enviado do transcendente e pregador de uma nova igreja. Os desdobramentos da decisão, terríveis e trágicos, desvelam os frágeis fundamentos que ordenam e condenam o mundo que estatui.
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Para ser alexandrino, e por assim se realizar, o romance de Luiz Vilela é um desdobrar incessante de referências, citações, homenagens, em ecos evidentes ou em ecos que ocultam sua origem, no exercício intertextual que retoma centenas de autores, poetas, artistas (atores, pintores, escultores etc.), ficcionistas, filósofos e pensadores (teóricos das mais diversas disciplinas, como literatos, teólogos, linguistas, historiadores, sociólogos, sexólogos etc.). E também faz da reflexão metalinguística um de seus pontos altos: nesse caso, como nos demais, o autor evita, com cuidado artesanal, proselitismos e digressões infindas, indo ao ponto, sempre, sem tergiversar.
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O romance se divide em três partes, cada uma delas com onze capítulos. Embora, no geral, as partes sejam equivalentes, os capítulos não são homogêneos quanto ao tamanho, havendo aqueles que são mais longos e outros relativamente curtos. As três partes são: “O rapaz dos peixes”, “Pastor de almas” e... — perdoe-nos, leitor apressado, reservemos esse título para aquele momento em que, ao ter o volume em mãos, o possa descobrir, por si mesmo, em instante de simultâneo susto, apreensão e suspense ao entrever, em uma única palavra, o terrível desfecho da narrativa.
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As três partes, por serem três e apresentarem simetria quanto ao número de capítulos, emula a Comédia de Dante Alighiere, o célebre poema que cristaliza o medievo em seu momento alexandrino, contexto no qual as sociedades e os grandes períodos históricos atingem o ápice de seu modo de se constituir e de se expressar esteticamente. Em Dante, na descrição de um mundo que vive seu apogeu, já se pressente que as portas desse modo de organização da sociedade, em algum momento, próximo ainda que tarde, serão arrombadas para a eclosão do vigor burguês.
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Observemos, em parênteses, que se a segunda e a terceira partes do épico danteano, respectivamente “O Purgatório” e “O Céu”, contam cada uma com trinta e três cantos, a primeira parte, “O Inferno”, tem trinta e quatro cantos. Essa diferença, aparentemente casual, implica em novos sentidos, tanto na Comédia quanto em Perdição.
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No paralelo que aos poucos vislumbramos, parece-nos talvez que a obra de Vilela inverte o caminho, iniciando no céu, embora um céu em que nem tudo são flores, percorrendo o purgatório e chegando ao inferno, onde a tragédia se abate sobre os destinos que as personagens escolheram para si mesmas. O céu, o purgatório e o inferno de Perdição representam o mundo, o nosso mundo, o mundo de nossos dias, no nosso tempo, resultado das nossas escolhas, fruto das nossas decisões e da herança de nossos pais, aquela herança que não soubemos, não quisemos ou não conseguimos re-moldar ao nosso feitio.
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Nessa trajetória, do céu ao purgatório e ao inferno, temos, em outra clave, a trajetória da formação do homem, da infância à vida adulta (impossível, no quadro desenhado, nomear a tal período como de autonomia ou de maturidade) e daí à decrepitude, instante de inexorável queda. Isso no que diz respeito ao protagonista, sendo o narrador homodiegético observador implacável, iluminista, algo cínico, nosso guia satírico em uma sociedade corrompida e entremeio a um mundo sem sentido.
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Trata-se de quadro similar — com certeza em paródia irônica — ao do romance burguês realista, do herói problemático. Trata-se, ainda, do pathos moralista do homem decaído que violenta aos outros, a si mesmo e ao mundo, e que chega a um beco sem saída, a um buraco interrompido pela inabalável laje de uma pedra: é o humano de nossa época, uma época em que cada um traça o seu destino para, no final de tudo, não ter destino algum.
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Apesar de nosso argumento aparentemente nos solicitar que nos alonguemos na exposição do espaço e do tempo, assim como do enredo e da construção das personagens, com toques sobre o narrador (cujo ponto de vista é uma surpresa no universo romanesco de Luiz Vilela, sendo foco narrativo algo raro entre os grandes romances nacionais), não seguiremos por aí nesta nossa primeira e tateante visada sobre Perdição. Fiquemos aqui com Dante e Vilela, e sobre suas obras falemos da linguagem, do humor e de acidez.
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A linguagem, em Luiz Vilela, desde a obra de estreia, o volume de contos Tremor de terra, de 1967, tem por característica a simplicidade vocabular, a seleção lexical de exatidão expressiva, o registro coloquial, a ordem direta, as metáforas sem rebuscamento, a profundidade do pensamento não sendo obscurecida por torneios ou gongorismos.
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Vilela conta histórias ficcionais em que sobre-eleva o enredo, sem apelos midiáticos ou concessões à indústria cultural. Para tanto, a frase é límpida, sem tropicões incongruentes, sem apelos que firam a psicologia das personagens, em fluir que atende a certa correção gramatical e que parece o falar cotidiano, como uma conversa doméstica após o jantar.
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Os diálogos travados entre as personagens em cena parecem arrancados do real, parecem a conversação que temos todo dia com pais, filhos, vizinhos, chefes, comandados ou desconhecidos. Tal efeito de verossimilhança que mimetiza diálogos reais expressa proposta estética da língua brasileira elaborada pelos modernistas brasileiros.
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Em Perdição, a maestria do autor no domínio do diálogo mais uma vez se patenteia, tornando Luiz Vilela uma avis rara no cenário da literatura brasileira atual, na qual a quase totalidade dos ficcionistas formatam digressões, obscuras ou rasas, quando não ambas, em caudais no qual, se há algum diálogo, é tão só do eu consigo mesmo.
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O diálogo encenado pelas personagens de Vilela, na trivialidade do acontecimento banal, comum e corriqueiro, faz com que a narrativa avance, aprofunde e, pela força da arte quanto à seleção lexical e à construção semântica, reverbere o imprevisto de significações ocultas. A construção encenada pelo diálogo entre as personagens, dominante ao longo do romance, é de diálogos em que acontecimentos diários e vulgares ganham densidade, e nos quais debate que invoque tema maior é matizado pelo riso, do cômico à sátira, e, no âmbito moral, pelo sentimento que vai da compaixão por todas as coisas à raiva pelo humano reificado, desumanizado.
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Anote-se que Dante Aliguieri, em sua obra máxima, também se vale do diálogo entre as personagens para expor as baixezas e grandezas, os infortúnios e os amores, dessa gente que Camões, depois, vai nomear “esse bicho da terra tão pequeno”: o homem. Anote-se que o diálogo, em Dante, não é rocambolesco, confuso, hiperbólico ou com violentas inversões sintáticas: é simples e direto, ainda que possa não parecer tão natural quanto o de Luiz Vilela, uma vez que preso aos tercetos, à métrica e às rimas.
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Diverge o romance de Vilela, quanto ao poema de Dante, em um aspecto arquitetural, porque a estrutura matemática, equivalente, causalista, do universo fechado da Comédia, tem em Perdição uma estrutura que parece homóloga, mas não é equivalente — nem, do mesmo modo, causalista — pois reflete um universo aberto, caótico, em que o homem, não mais centro até mesmo de Deus, se descobre pó ínfimo em um infinito sem-fim de planetas e estrelas e buracos negros.
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Quanto a esse aspecto estrutural, o que se verifica é que os cantos danteanos apresentam formatos similares e dimensões semelhantes, enquanto os capítulos do romance de Vilela, como já anotamos, têm maior diversidade e diferenciação quanto ao formato e à dimensão.
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O tônus simples e direto da linguagem, a compaixão — vertente do cristão que acredita no humano — e a acidez, corrosiva, de quem já não tem crença no homem, fazem de Perdição, também sob o aspecto da construção do discurso e dos efeitos de sentido que institui, romance que dialoga com os cantos do poema de Dante Alighieri.
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A forma do épico medieval, em seus cem cantos que progridem do inferno para o céu, é, pois, invertida no romance de Luiz Vilela, cuja trajetória vai da inocência à glória, da glória ao pecado e do pecado à perdição. Desse modo, o romance de Vilela rompe com a proposição danteana também ao não ter, no inferno, uma seção a mais que nas duas outras partes, mantendo a homologia com as outras duas partes, fixando cada uma delas, como descrevemos no início desta resenha, em onze capítulos.
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Algo parece nos dizer que o capítulo em elipse — e justo o último, o inferno do inferno — seria como que um novo épico, a ser escrito: seria como se, depois de Graça, o romance que Luiz Vilela lançou em 1989, e depois de Perdição, que agora vem a lume, o autor lance um novo romance, completando uma trilogia sobre o final dos tempos. Essa obra em preparo — com o humor, com a serenidade, com a sabedoria já entrevista nos volumes anteriores, culmina a representação do Brasil e do mundo dos vinte últimos anos do século XX e da primeira década do terceiro milênio. E o autor a redige em meio a um troar de trombetas, a um canto seráfico embalado em ranger de dentes e gritos de supliciados, tendo nas narinas o odor de enxofre, estando sob a pálida luz de uma aurora na qual os cisnes cantam — ou seja, nos estertores de atmosfera símbolo de bonança predecessora da tempestade final. Em uma palavra, o autor parece antecipar que agora só nos cabe, e ele nos proverá em novo volume, o Apocalipse, o que a última frase do romance parece explicitar ainda mais.
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Se a Comédia de Dante recebeu, pela posteridade, a alcunha de A Divina Comédia, o épico bíblico, fundador, ético, realista, erótico, crítico e alexandrino de Luiz Vilela, o Perdição — seja pela auto-ironia implícita, seja pelo paradoxo que exala, seja pela grandeza da proposta romanesca, seja pela simplicidade coloquial da linguagem ou seja pela superior realização estética — bem pode ser nomeado como A Divina Perdição.

(Rauer)


Rauer Ribeiro Rodrigues 
  • Coordena o Grupo de Pesquisa Luiz Vilela, cujas atividades estão em http://gpluizvilela.blogspot.com; é doutor em estudos literários pela UNESP de Araraquara e professor na UFMS. Faz pós-doutorado na UERJ, sob supervisão do Professor Roberto Acízelo de Souza. Atua no Mestrado em Letras da UFMS, Câmpus de Três Lagoas, e no Mestrado em Estudos de Linguagens, Câmpus de Campo Grande. Ficcionista, tem sete livros publicados e outro tanto na gaveta (ou nos arquivos de computador). Contatos pelo email rauer.rauer@uol.com.br.

Nota de 8 dez. 2011 - versão anterior desta resenha foi publicada em
:
Jornal do Pontal, Ituiutaba, MG, nº 3491, 8 dez. 2011, p. 13, com chamada na 1ª. página. Disponível em < http://www.jornaldopontal.com.br/JornalVirtual.php >.  
.Nota de 31 dez. 2012 - veja nova resenha de Rauer sobre o romance aqui.

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