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A DIVINA PERDIÇÃO
O épico bíblico de Luiz Vilela
Perdição
Luiz Vilela
Romance, 2011
400 páginas
Ed. Record
R$ 39,90
R$ 39,90
Chega às livrarias, nesta semana, o romance Perdição,
de Luiz Vilela. Chamar ao caudaloso volume pelo gênero trivial dos manuais de
teoria literária desserve ao livro e ao leitor. Trata-se de um épico
monumental, e esse é o seu primeiro paradoxo, pois — diferente das normas da epopeia, que preceituam personagens
principescas — expõe a vida de personagens comuns para assim representar,
refletir e problematizar seu tempo e seu país.
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Ao menos há duzentos anos os estudiosos condenaram a modalidade
inaugural da épica, a epopeia, à inanição, considerando-a inadequada como
estética para exprimir o burguês capitalista, a sociedade industrializada e um
imaginário a-mítico. Como narrativa, ficou a épica reduzida ao romance, sem o
sopro totalizador que configura o significado da palavra. Entretanto, Luiz
Vilela se vale de sua prodigiosa capacidade de ficcionista e de escritor para
contrariar os manuais e realizar, com pertinência, o que parecia incabível.
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Mas não se trata só de um épico, a que em justificado pleonasmo
qualificamos de monumental: é um épico bíblico, ou, como já adiantara o próprio
Luiz Vilela, em uma entrevista de 2005, um épico de inspiração bíblica. E,
sendo assim, mais ainda parece obra anacrônica em tempos de materialismo
disseminado nas relações sociais e interpessoais, restando — no âmbito da subjetividade
— um vago e raso espiritualismo que mascara em hipocrisia o egoísmo que lateja
dentro de cada ser humano.
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Não se trata, e não é o que se pretende expressar, de uma epopeia ou de
uma épica nos moldes aristotélicos, nem sequer na configuração hegeliana:
diante do mundo fragmentário, do universo dissoluto e de homens coisificados;
diante do maravilhoso que se esvaiu de sentido, do transcendente inalcançável e
do heroísmo que é apenas propaganda enganosa; diante de globalização que
atomiza, da ética vitoriosa do amoral e da violência tornada cotidiana,
corriqueira e socialmente vista como aceitável — diante da sociedade ocidental
em sua expressão brasileira na virada do segundo para o terceiro milênio,
Vilela forja um romance que resgata o ethos de uma narrativa
épica.
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Ao construir um épico fundado no intertexto bíblico, Luiz Vilela, por um
lado, desvela um tempo em que a religião tornou-se simulacro espelhando efetiva
não-religiosidade, e, por outro lado, encena sua fábula como que em cronotopo
de exemplaridade, fazendo-a ressoar, no aqui e no agora do Brasil do início do
terceiro milênio, o homem em suas fragilidades, angústias, grandezas e
mesquinharias de todos os tempos e de todos os lugares.
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Dizer que se trata de um épico e qualificá-lo de inspiração bíblica, no
entanto, ainda não é fazer justiça à obra, mesmo sendo o romance bafejado por
tal inspiração e tendo tal sopro épico.
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Expliquemo-nos. Trata-se, Perdição, de narrativa que
se faz, ao mesmo tempo, fundadora e alexandrina: é fundadora ao ter em si, e os
desvelar ficcionalmente, as bases e os fundamentos do Brasil que se faz, após
quinhentos anos de existência, nação que começa a se realizar na democracia
interna e na autonomia diante das antigas potências metropolitanas; e é
alexandrina ao, do mesmo modo, ter em si e os desvelar, por intermédio da
criação ficcional, o caótico momento em que o modelo e a estrutura da sociedade
ocidental capitalista se exaurem quanto às promessas que fez para a ascensão
burguesa, embora tenha, o capitalismo burguês, entremeio suas contradições e em
sua camaleônica capacidade de mimetizar e de se transformar, fulminado as
utopias que pretendiam rendê-lo e substituí-lo. Desse modo, o romance de Luiz
Vilela exala uma esperança desesperançada.
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Para ser fundadora, a narrativa se erige como uma parábola, como se
fizesse da famosa passagem de Mateus (16: 18) o ponto de partida do romance: “E
eu digo-te que tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja, e as
portas do inferno não prevalecerão contra ela”. Se Cristo assim se dirige a
Pedro, o protagonista de Perdição recebe chamado
similar, em intertexto com o momento em que Jesus conhece Pedro e o chama para
deixar de ser pescador de peixes e se tornar um pescador de homens (ver Mateus
4: 18-20 e Lucas 5: 1-11). Ao mudar de identidade, a personagem desliza — a seu
ver — de sua condição mundana, terrena, para se realizar como um enviado do
transcendente e pregador de uma nova igreja. Os desdobramentos da
decisão, terríveis e trágicos, desvelam os frágeis fundamentos que ordenam e
condenam o mundo que estatui.
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Para ser alexandrino, e por assim se realizar, o romance de Luiz Vilela
é um desdobrar incessante de referências, citações, homenagens, em ecos
evidentes ou em ecos que ocultam sua origem, no exercício intertextual que
retoma centenas de autores, poetas, artistas (atores, pintores, escultores
etc.), ficcionistas, filósofos e pensadores (teóricos das mais diversas
disciplinas, como literatos, teólogos, linguistas, historiadores, sociólogos,
sexólogos etc.). E também faz da reflexão metalinguística um de seus pontos
altos: nesse caso, como nos demais, o autor evita, com cuidado artesanal,
proselitismos e digressões infindas, indo ao ponto, sempre, sem tergiversar.
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O romance se divide em três partes, cada uma delas com onze capítulos.
Embora, no geral, as partes sejam equivalentes, os capítulos não são homogêneos
quanto ao tamanho, havendo aqueles que são mais longos e outros relativamente
curtos. As três partes são: “O rapaz dos peixes”, “Pastor de almas” e... —
perdoe-nos, leitor apressado, reservemos esse título para aquele momento em
que, ao ter o volume em mãos, o possa descobrir, por si mesmo, em instante de
simultâneo susto, apreensão e suspense ao entrever, em uma única palavra, o
terrível desfecho da narrativa.
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As três partes, por serem três e apresentarem simetria quanto ao
número de capítulos, emula a Comédia de Dante
Alighiere, o célebre poema que cristaliza o medievo em seu momento alexandrino,
contexto no qual as sociedades e os grandes períodos históricos atingem o ápice
de seu modo de se constituir e de se expressar esteticamente. Em Dante, na
descrição de um mundo que vive seu apogeu, já se pressente que as portas desse
modo de organização da sociedade, em algum momento, próximo ainda que tarde,
serão arrombadas para a eclosão do vigor burguês.
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Observemos, em parênteses, que se a segunda e a terceira partes do épico
danteano, respectivamente “O Purgatório” e “O Céu”, contam cada uma com trinta
e três cantos, a primeira parte, “O Inferno”, tem trinta e quatro cantos. Essa
diferença, aparentemente casual, implica em novos sentidos, tanto na Comédia quanto
em Perdição.
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No paralelo que aos poucos vislumbramos, parece-nos talvez que a obra de
Vilela inverte o caminho, iniciando no céu, embora um céu em que nem tudo são
flores, percorrendo o purgatório e chegando ao inferno, onde a tragédia se
abate sobre os destinos que as personagens escolheram para si mesmas. O céu, o
purgatório e o inferno de Perdição representam o mundo,
o nosso mundo, o mundo de nossos dias, no nosso tempo, resultado das nossas
escolhas, fruto das nossas decisões e da herança de nossos pais, aquela herança
que não soubemos, não quisemos ou não conseguimos re-moldar ao nosso feitio.
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Nessa trajetória, do céu ao purgatório e ao inferno, temos, em outra
clave, a trajetória da formação do homem, da infância à vida adulta
(impossível, no quadro desenhado, nomear a tal período como de autonomia ou de
maturidade) e daí à decrepitude, instante de inexorável queda. Isso no que diz
respeito ao protagonista, sendo o narrador homodiegético observador implacável,
iluminista, algo cínico, nosso guia satírico em uma sociedade corrompida e
entremeio a um mundo sem sentido.
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Trata-se de quadro similar — com certeza em paródia irônica — ao do
romance burguês realista, do herói problemático. Trata-se, ainda, do pathos
moralista do homem decaído que violenta aos outros, a si mesmo e ao mundo,
e que chega a um beco sem saída, a um buraco interrompido pela inabalável laje
de uma pedra: é o humano de nossa época, uma época em que cada um traça o seu
destino para, no final de tudo, não ter destino algum.
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Apesar de nosso argumento aparentemente nos solicitar que nos alonguemos
na exposição do espaço e do tempo, assim como do enredo e da construção das
personagens, com toques sobre o narrador (cujo ponto de vista é uma surpresa no
universo romanesco de Luiz Vilela, sendo foco narrativo algo raro entre os
grandes romances nacionais), não seguiremos por aí nesta nossa primeira e
tateante visada sobre Perdição. Fiquemos aqui com Dante e
Vilela, e sobre suas obras falemos da linguagem, do humor e de acidez.
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A linguagem, em Luiz Vilela, desde a obra de estreia, o volume de contos
Tremor de terra, de 1967, tem por característica a simplicidade
vocabular, a seleção lexical de exatidão expressiva, o registro coloquial, a
ordem direta, as metáforas sem rebuscamento, a profundidade do pensamento não
sendo obscurecida por torneios ou gongorismos.
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Vilela conta histórias ficcionais em que sobre-eleva o enredo, sem
apelos midiáticos ou concessões à indústria cultural. Para tanto, a frase é
límpida, sem tropicões incongruentes, sem apelos que firam a psicologia das
personagens, em fluir que atende a certa correção gramatical e que parece o
falar cotidiano, como uma conversa doméstica após o jantar.
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Os diálogos travados entre as personagens em cena parecem arrancados do
real, parecem a conversação que temos todo dia com pais, filhos, vizinhos,
chefes, comandados ou desconhecidos. Tal efeito de verossimilhança que mimetiza
diálogos reais expressa proposta estética da língua brasileira elaborada pelos
modernistas brasileiros.
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Em Perdição, a maestria do autor no domínio do
diálogo mais uma vez se patenteia, tornando Luiz Vilela uma avis rara no
cenário da literatura brasileira atual, na qual a quase totalidade dos
ficcionistas formatam digressões, obscuras ou rasas, quando não ambas, em
caudais no qual, se há algum diálogo, é tão só do eu consigo mesmo.
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O diálogo encenado pelas personagens de Vilela, na trivialidade do
acontecimento banal, comum e corriqueiro, faz com que a narrativa avance,
aprofunde e, pela força da arte quanto à seleção lexical e à construção
semântica, reverbere o imprevisto de significações ocultas. A construção
encenada pelo diálogo entre as personagens, dominante ao longo do romance, é de
diálogos em que acontecimentos diários e vulgares ganham densidade, e nos quais
debate que invoque tema maior é matizado pelo riso, do cômico à sátira, e, no
âmbito moral, pelo sentimento que vai da compaixão por todas as coisas à raiva
pelo humano reificado, desumanizado.
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Anote-se que Dante Aliguieri, em sua obra máxima, também se vale do
diálogo entre as personagens para expor as baixezas e grandezas, os infortúnios
e os amores, dessa gente que Camões, depois, vai nomear “esse bicho da terra
tão pequeno”: o homem. Anote-se que o diálogo, em Dante, não é rocambolesco,
confuso, hiperbólico ou com violentas inversões sintáticas: é simples e direto,
ainda que possa não parecer tão natural quanto o de Luiz Vilela, uma vez que
preso aos tercetos, à métrica e às rimas.
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Diverge o romance de Vilela, quanto ao poema de Dante, em um aspecto
arquitetural, porque a estrutura matemática, equivalente, causalista, do
universo fechado da Comédia, tem em Perdição uma
estrutura que parece homóloga, mas não é equivalente — nem, do mesmo modo, causalista — pois reflete um
universo aberto, caótico, em que o homem, não mais centro até mesmo de Deus, se
descobre pó ínfimo em um infinito sem-fim de planetas e estrelas e buracos
negros.
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Quanto a esse aspecto estrutural, o que se verifica é que os cantos
danteanos apresentam formatos similares e dimensões semelhantes, enquanto os
capítulos do romance de Vilela, como já anotamos, têm maior diversidade e
diferenciação quanto ao formato e à dimensão.
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O tônus simples e direto da linguagem, a compaixão — vertente do cristão
que acredita no humano — e a acidez, corrosiva, de quem já não tem crença no
homem, fazem de Perdição, também sob o aspecto da construção
do discurso e dos efeitos de sentido que institui, romance que dialoga com os
cantos do poema de Dante Alighieri.
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A forma do épico medieval, em seus cem cantos que progridem do inferno
para o céu, é, pois, invertida no romance de Luiz Vilela, cuja trajetória vai
da inocência à glória, da glória ao pecado e do pecado à perdição. Desse modo,
o romance de Vilela rompe com a proposição danteana também ao não ter, no
inferno, uma seção a mais que nas duas outras partes, mantendo a homologia com
as outras duas partes, fixando cada uma delas, como descrevemos no início desta
resenha, em onze capítulos.
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Algo parece nos dizer que o capítulo em elipse — e justo o último, o
inferno do inferno — seria como que um novo épico, a ser escrito: seria como
se, depois de Graça, o romance que Luiz Vilela lançou em
1989, e depois de Perdição, que agora vem a lume, o autor lance
um novo romance, completando uma trilogia sobre o final dos tempos. Essa obra
em preparo — com o humor, com a serenidade, com a sabedoria já entrevista nos
volumes anteriores, culmina a representação do Brasil e do mundo dos vinte
últimos anos do século XX e da primeira década do terceiro milênio. E o autor a
redige em meio a um troar de trombetas, a um canto seráfico embalado em ranger
de dentes e gritos de supliciados, tendo nas narinas o odor de enxofre, estando
sob a pálida luz de uma aurora na qual os cisnes cantam — ou seja, nos
estertores de atmosfera símbolo de bonança predecessora da tempestade final. Em
uma palavra, o autor parece antecipar que agora só nos cabe, e ele nos proverá
em novo volume, o Apocalipse, o que a última frase do romance
parece explicitar ainda mais.
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Se a Comédia de Dante recebeu, pela posteridade,
a alcunha de A Divina Comédia, o épico bíblico, fundador,
ético, realista, erótico, crítico e alexandrino de Luiz Vilela, o Perdição —
seja pela auto-ironia implícita, seja pelo paradoxo que exala, seja pela
grandeza da proposta romanesca, seja pela simplicidade coloquial da linguagem ou seja pela superior realização estética — bem
pode ser nomeado como A Divina Perdição.
(Rauer)
Rauer Ribeiro
Rodrigues
- Coordena o Grupo de Pesquisa Luiz Vilela, cujas atividades estão em http://gpluizvilela.blogspot.com; é doutor em estudos literários pela UNESP de Araraquara e professor na UFMS. Faz pós-doutorado na UERJ, sob supervisão do Professor Roberto Acízelo de Souza. Atua no Mestrado em Letras da UFMS, Câmpus de Três Lagoas, e no Mestrado em Estudos de Linguagens, Câmpus de Campo Grande. Ficcionista, tem sete livros publicados — e outro tanto na gaveta (ou nos arquivos de computador). Contatos pelo email rauer.rauer@uol.com.br.
Nota de 8 dez. 2011 - versão anterior desta resenha foi publicada em:
Jornal do Pontal, Ituiutaba, MG, nº 3491, 8 dez. 2011, p. 13, com chamada na 1ª. página. Disponível em < http://www.jornaldopontal.com.br/JornalVirtual.php >.
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