domingo, 6 de novembro de 2016

O Filho de Machado de Assis - 5

     Quando escrevi meu livro Os segredos da ficção - Um guia na arte de escrever narrativas – cataloguei cinco tipos de diálogos:

1 – Diálogo tradicional com sinais gráficos:
– Vou ao cinema, Soraia. Quer ir comigo?      
– Sim; quero muito ir com você.... 

2 – Diálogo tradicional sem sinais gráficos:
Vou ao cinema, Soraia. Quer ir comigo...?
Sim, quero muito ir com você... 

3 – Diálogos com aspas, dramáticos:
– Já lhe disse mais de uma vez: “Mate, se não quer morrer”.     
– Pode não ser assim: “Não faça inimigos para não ter de enfrentá-los depois”, meu pai dizia sempre. 

4 – Diálogos entrecruzados:
    
– Uma medalha para o sr. Jacques... “Quem sabe posso buscá-la em casa...”.   – Outra medalha para a filha do sr. Jacques...    “Será um momento muito feliz...” 

5 – Diálogo indireto livre:
    Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo...   Vim a Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai – voz do narrador   Um tal de Pedro Páramo – voz da mãe do narrador... 

Agora devo acrescentar mais um diálogo narrativo: o desenvolvido pelo escritor mineiro Luiz Vilela no seu mais recente romance O filho de Machado de Assis (Record). O diálogo narrativo se apresenta como novidade em Vilela porque revela todo o texto dramático e não apenas um detalhe, digamos, um ponto do enredo.
Na verdade, o diálogo tem sido o aspecto mais importante na obra de Vilela, desde que Antônio Cândido chamou a atenção para isso na estreia do autor agora consagrado. Mesmo com muitas experiências, o diálogo em Vilela nunca perdeu a qualidade e a agilidade. Agora avança, definitivamente, porque envolve a trama e o desenvolvimento narrativos, mesmo quando cede espaço para a digressão, como ocorre no capítulo 5 do livro.
Destaque-se que, no capítulo 5, a narrativa, por assim dizer “linear”, cede espaço a um novo personagem, o padre Ludovico. Faço distinção ao linear porque nada em Vilela é linear, mesmo o diálogo mais simples e mais humilde. Até porque nesse escritor tudo parece simples e humilde. E tudo só na aparência. Reforçando o diálogo, veementemente, o mineiro parece – e esta é uma palavra muito cara para a análise dos seus textos, sempre parece – dispensar, por exemplo, os cenários que, no entanto, mostram-se em marcações rápidas e secas.
Vejam o que acontece na abertura deste O filho de Machado de Assis: “Naquela manhã, uma bela manhã de sábado, preparava-me para ir à praia, onde me encontraria com a minha namorada, quando o telefone tocou.”
De repente, num texto de pouquíssimas palavras, há um cenário muito forte que localiza a ação e o personagem. Precisão rigorosa e rápida. O leitor situa-se logo num cenário de uma praia numa bela manhã de sábado. A questão é saber qual a função do adjetivo “bela” neste momento. Percebemos, por isso mesmo, com a maior clareza, que um dos destaques mais fortes deste livro é a ironia. Vilela ironiza, no plano geral, com este tipo de pesquisa inútil que atinge pontos risíveis dos estudos literários. Por que um estudioso passaria anos a fio procurando descobrir se Machado de Assis teve ou não um filho, por causa de uma frase do narrador de Brás Cubas? Claro que o autor reconhece que o motivo é bobo, sem qualquer tipo de influência nos estudos machadiano. Mas a narrativa expõe: “eu li esse final de Brás Cubas quando eu era jovem. Eu li na escola. Eu fiquei tão impressionado, que eu vivia dizendo-o aonde quer que eu fosse”; “Sei”; “E a influência dele em mim foi tão forte, tão forte, que, se eu não tive filhos, foi por causa dele, você acredita?”; “‘Acredito’, eu disse, ‘claro’”; “Pois é… a força das palavras...Eu fico impressionado...A força que as palavras têm...”
O pesquisador padre Simão está convencido de que a sua descoberta do filho de Machado de Assis vai cair como uma bomba. A narrativa acrescenta: “‘Uma bomba’, eu repeti… ‘o que eles vão dizer? Como eles vão reagir?’”; “‘É’, eu disse”; “‘E o mundo editorial’, continuou o professor, inflamado. ‘Estudos, biografias, dicionários, livros, didáticos… o mundo acadêmico: gente que escreve livros inteiros explicando a obra do Bruxo pela ausência de filhos...E, agora, como é que eles vão ficar...?’”; “Já pensou...? Até no Exterior!”
O diálogo conta a história com incrível habilidade, sem perder a força e sem que o narrador tenha que fazer interrupções ou explicando as reações dos interlocutores, o que só ocorre na necessidade absoluta. Vem daí a necessidade de se examinar a necessidade ou não das marcações narrativas, quase sempre desnecessárias.
Na obra de arte ficcional, tudo tem função e efeito. Isso fica demonstrado, com clareza, quando se perde que o autor usa a marcação por imitação. Ou seja: se os outros fazem assim, também eu vou fazer. Erro grosseiro, sem dúvida. Assim:
– Você está brincando comigo... – disse Pedro coçando a barba...- porque nunca disse que a amo....
– Você não está entendendo nada... – Josefa continuou, sentada diante do namorado… – Não lhe imploro amor, mas apenas companhia...

Que importância narrativa tem “disse Pedro coçando a barba” ou “Josefa continuou sentada diante do namorado”? – são marcações inúteis e delas Vilela corre léguas. No máximo: “‘Desculpe’, eu disse, ‘me desculpe…’”; ‘Eu fiz um gesto de não-tem-nada-não.” Observem que a marcação corresponde a um gesto e tem, portanto, função e efeito, não é apenas imitação. Fazer porque os outros fazem… por isso o diálogo em Vilela é rápido e tão ágil. Pode, inclusive, contar histórias sem cenários e sem jogo de palavras.
Sem esquecer, sobretudo, a ironia deste livro inquietante, muito bem-escrito e muito bem-elaborado por um romancista que usa as suas melhores qualidades para atingir o melhor da obra de arte literária, dando aulas de criação, sem didatismo. É um livro que vai provocar muito debate nem só pela temática, mas sobretudo pela sua técnica apurada.
Nunca esqueça, Luiz Vilela é um escritor muito perigoso, justamente por causa da habilidade, da astúcia e da ironia.

PERNAMBUCO nº 129, novembro de 2016
Suplemento Cultural do Diário Oficial do Estado
http://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/105-colunas/raimundo-carrero/1719-luiz-vilela-e-seu-pr%C3%B3prio-di%C3%A1logo-narrativo.html

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