LUIZ VILELA E SEU PRÓPRIO DIÁLOGO NARRATIVO
- Escrito por Raimundo Carrero (arte de Janio Santos)
Quando escrevi meu livro Os segredos da
ficção - Um guia na arte de escrever
narrativas – cataloguei cinco tipos de diálogos:
1 – Diálogo tradicional com sinais
gráficos:
– Vou ao cinema, Soraia. Quer ir
comigo?
– Sim; quero muito ir com você....
2 – Diálogo tradicional sem sinais
gráficos:
Vou ao cinema, Soraia. Quer ir comigo...?
Sim, quero muito ir com você...
3 – Diálogos com aspas, dramáticos:
– Já lhe disse mais de uma vez:
“Mate, se não quer morrer”.
– Pode não ser assim: “Não faça inimigos para não ter de enfrentá-los depois”, meu pai dizia sempre.
– Pode não ser assim: “Não faça inimigos para não ter de enfrentá-los depois”, meu pai dizia sempre.
4 – Diálogos entrecruzados:
– Uma medalha para o sr. Jacques... “Quem
sabe posso buscá-la em casa...”. – Outra medalha para a filha
do sr. Jacques... “Será um momento muito feliz...”
5 – Diálogo indireto livre:
Vim a Comala porque me
disseram que aqui vivia meu pai, um tal de Pedro Páramo... Vim a
Comala porque me disseram que aqui vivia meu pai – voz do narrador
Um tal de Pedro Páramo – voz da mãe do narrador...
Agora devo acrescentar mais um diálogo
narrativo: o desenvolvido pelo escritor mineiro Luiz Vilela no seu mais recente
romance O filho de Machado de Assis (Record). O diálogo
narrativo se apresenta como novidade em Vilela porque revela todo o texto
dramático e não apenas um detalhe, digamos, um ponto do enredo.
Na verdade, o diálogo tem sido o aspecto
mais importante na obra de Vilela, desde que Antônio Cândido chamou a atenção
para isso na estreia do autor agora consagrado. Mesmo com muitas experiências,
o diálogo em Vilela nunca perdeu a qualidade e a agilidade. Agora avança,
definitivamente, porque envolve a trama e o desenvolvimento narrativos, mesmo
quando cede espaço para a digressão, como ocorre no capítulo 5 do livro.
Destaque-se que, no capítulo 5, a
narrativa, por assim dizer “linear”, cede espaço a um novo personagem, o padre
Ludovico. Faço distinção ao linear porque nada em Vilela é linear, mesmo o
diálogo mais simples e mais humilde. Até porque nesse escritor tudo parece
simples e humilde. E tudo só na aparência. Reforçando o diálogo, veementemente,
o mineiro parece – e esta é uma palavra muito cara para a análise dos
seus textos, sempre parece – dispensar, por exemplo, os cenários que, no
entanto, mostram-se em marcações rápidas e secas.
Vejam o que acontece na abertura
deste O filho de Machado de Assis: “Naquela manhã, uma bela manhã
de sábado, preparava-me para ir à praia, onde me encontraria com a minha
namorada, quando o telefone tocou.”
De repente, num texto de pouquíssimas
palavras, há um cenário muito forte que localiza a ação e o personagem.
Precisão rigorosa e rápida. O leitor situa-se logo num cenário de uma praia
numa bela manhã de sábado. A questão é saber qual a função do adjetivo “bela”
neste momento. Percebemos, por isso mesmo, com a maior clareza, que um dos
destaques mais fortes deste livro é a ironia. Vilela ironiza, no plano geral,
com este tipo de pesquisa inútil que atinge pontos risíveis dos estudos
literários. Por que um estudioso passaria anos a fio procurando descobrir se
Machado de Assis teve ou não um filho, por causa de uma frase do narrador de
Brás Cubas? Claro que o autor reconhece que o motivo é bobo, sem qualquer tipo
de influência nos estudos machadiano. Mas a narrativa expõe: “eu li esse final
de Brás Cubas quando eu era jovem. Eu li na escola. Eu fiquei tão
impressionado, que eu vivia dizendo-o aonde quer que eu fosse”; “Sei”; “E a
influência dele em mim foi tão forte, tão forte, que, se eu não tive filhos,
foi por causa dele, você acredita?”; “‘Acredito’, eu disse, ‘claro’”; “Pois é…
a força das palavras...Eu fico impressionado...A força que as palavras têm...”
O pesquisador padre Simão está convencido
de que a sua descoberta do filho de Machado de Assis vai cair como uma bomba. A
narrativa acrescenta: “‘Uma bomba’, eu repeti… ‘o que eles vão dizer? Como eles
vão reagir?’”; “‘É’, eu disse”; “‘E o mundo editorial’, continuou o professor,
inflamado. ‘Estudos, biografias, dicionários, livros, didáticos… o mundo
acadêmico: gente que escreve livros inteiros explicando a obra do Bruxo pela
ausência de filhos...E, agora, como é que eles vão ficar...?’”; “Já pensou...?
Até no Exterior!”
O diálogo conta a história com incrível
habilidade, sem perder a força e sem que o narrador tenha que fazer
interrupções ou explicando as reações dos interlocutores, o que só ocorre na
necessidade absoluta. Vem daí a necessidade de se examinar a necessidade ou não
das marcações narrativas, quase sempre desnecessárias.
Na obra de arte ficcional, tudo tem função
e efeito. Isso fica demonstrado, com clareza, quando se perde que o autor usa a
marcação por imitação. Ou seja: se os outros fazem assim, também eu vou fazer.
Erro grosseiro, sem dúvida. Assim:
– Você está brincando comigo... –
disse Pedro coçando a barba...- porque nunca disse que a amo....
– Você não está entendendo nada...
– Josefa continuou, sentada diante do namorado… – Não lhe
imploro amor, mas apenas companhia...
Que importância narrativa tem “disse Pedro
coçando a barba” ou “Josefa continuou sentada diante do namorado”? – são
marcações inúteis e delas Vilela corre léguas. No máximo: “‘Desculpe’, eu
disse, ‘me desculpe…’”; ‘Eu fiz um gesto de não-tem-nada-não.” Observem que a
marcação corresponde a um gesto e tem, portanto, função e efeito, não é apenas
imitação. Fazer porque os outros fazem… por isso o diálogo em Vilela é rápido e
tão ágil. Pode, inclusive, contar histórias sem cenários e sem jogo de palavras.
Sem esquecer, sobretudo, a ironia deste
livro inquietante, muito bem-escrito e muito bem-elaborado por um romancista
que usa as suas melhores qualidades para atingir o melhor da obra de arte
literária, dando aulas de criação, sem didatismo. É um livro que vai provocar
muito debate nem só pela temática, mas sobretudo pela sua técnica apurada.
Nunca esqueça, Luiz Vilela é um escritor
muito perigoso, justamente por causa da habilidade, da astúcia e da ironia.
PERNAMBUCO nº 129, novembro de
2016
Suplemento Cultural do Diário Oficial do
Estado
http://www.suplementopernambuco.com.br/edi%C3%A7%C3%B5es-anteriores/105-colunas/raimundo-carrero/1719-luiz-vilela-e-seu-pr%C3%B3prio-di%C3%A1logo-narrativo.html
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