O
FANTÁSTICO IRÔNICO EM LUIZ VILELA
Rodrigo Andrade Pereira (PG-UFMS)
O teórico
da literatura Georg Lukács (1885-1971) afirma que o romance é o único gênero
literário em que a ética do romancista converte-se em problema estético da
obra. O romancista, novelista e contista Luiz Vilela nos parece estabelecer tal
paradigma também no conto. Ele demonstra esse engenho e arte já em seu livro de
estreia, Tremor de Terra, do qual saíram os três contos que compõem a
coletânea Três Histórias Fantásticas, que acaba de ganhar uma segunda
edição, pela Editora do SESI de São Paulo. A primeira edição saiu em 2009, pela
Editora Scipione, com prefácio de Sérgio Rodrigues. Integram a antologia os
contos “Imagem”, “O buraco” e “O fantasma”.
Vilela,
nestas três histórias, todas elas com vasta fortuna crítica e muito elogiadas
pela crítica especializada, faz o que há de melhor em sua contística, por meio
de um problema estético expõe a sua ética, a sua reflexão filosófica, um olhar
aguçado e atento para os problemas mais candentes da sociedade e,
consequentemente, do ser humano. O escritor se vale, nesses contos, o que é uma
constante que se apresenta em todos os seus livros, de uma verve altamente
irônica, em gradações que vão do riso ao sarcasmo; também neles, como nas suas
demais obras, verificamos uma profunda reflexão sobre a alma humana, por vezes
até didática, acessível, mas sempre encantadora. Não é à toa que o livro, tanto
a edição de 2009, quanto essa edição de 2016, foi escolhido pelo PNBE – Plano
Nacional Biblioteca na Escola, como obra paradidática para o Ensino Fundamental
II e Ensino Médio.
Duas dessas
histórias foram abordadas no trabalho de conclusão de curso de Fabiano
Sorrequia Oliveira, intitulado O fantástico nos contos de Luiz Vilela. Yvonélio Nery Ferreira abordou o conto “O buraco”, no artigo “Aspectos relevantes sobre memória e identidade no conto "O
buraco", de Luiz Vilela”, e o professor Rauer Ribeiro Rodrigues abordou o
conto “Imagem” no artigo “O motivo do espelho em contos de Aluísio
Azevedo, Machado de Assis , Guimarães Rosa e Luiz Vilela”. Outros estudos
sobre os contos podem ser localizados no Blog sobre Luiz Vilela, em registro
sobre o lançamento da segunda edição das Três Histórias Fantásticas,
disponível na página < http://gpluizvilela.blogspot.com.br/2016/11/sesi-sp-lanca-2a-edicao-das-tres.html
>.
A orelha do livro faz a seguinte apresentação dos contos: “Um jovem estranha sua imagem no espelho,
sofre com isso, e sai então em busca de sua verdadeira identidade. Outro jovem,
que vinha desde menino cavando um buraco no quintal de casa, vai perdendo a sua
forma humana, tornando-se cada vez mais solitário. Um terceiro jovem, para
fugir do Carnaval, viaja para um lugar deserto e lá, numa casa abandonada,
encontra um fantasma. Três histórias surpreendentes, três histórias que, além
de entreter, nos levam a pensar sobre os mistérios do ser humano, da vida e do
mundo”.
O que nos chama a atenção nessas três
histórias, primeiramente, é o narrador. Em todas as três narrativas temos um
narrador autodiegético, o que, a nosso ver, contribui bastante com a
identificação desses personagens narradores pelo público alvo dessa coletânea,
o adolescente entre 13 e 16 anos. Todos os narradores são do sexo masculino,
vivendo angústias e medos, a solidão e ─ paradoxalmente ─ o desejo da solidão,
a falta de jeito e a ausência de vontade para se comunicar. Esse narrador, com tais
características, é, ao nosso ver, um viés do arquinarrador de Luiz Vilela, e
apresentam mecanismo narrativo que encontramos muitas vezes em suas outras
obras, ao moldar o problema ético dos relacionamentos humanos no fundo estético
dos caracteres comuns das personagens que coloca em cena.
São personagens comuns, vivendo dramas
cotidianos, em narrativas coloquiais, de linguagem simples. O problema ético em
pauta é o drama da vivência em sociedade enfrentado por seres arraigadamente
insulares, em narrativas que se constroem na chave estética do fantástico, um
subgênero literário de larga tradição, ainda que minoritário diante da
avalanche neorrealista umbigocêntrica da maior parte da literatura brasileira,
perfil, aliás, que jamais atraiu Luiz Vilela.
Nesses contos, o fantástico se dá pela relação
que o narrador protagonista estabelece com algum tipo de “objeto”, algo em se
agarra, para superar essa falta de comunicação. No primeiro conto, “Imagem”, um
adolescente tem no espelho esse objeto, e é por meio dele que o protagonista
irá refletir sobre a sua condição, a sua transição do mundo infantil para o
mundo adulto. No segundo conto, “O buraco”, o protagonista “faz” o seu objeto,
no caso um buraco no fundo de casa, onde passa a frequentar e por último morar
nele, a ponto de se metamorfosear para se adequar àquele ambiente. No terceiro
conto, “O fantasma”, o protagonista, o único que inicia a narrativa já na fase
adulta, encontra em um fantasma, que, reza a lenda, andava assombrando a casa
da fazenda do seu tio, alguém com quem possa conversar sobre as trivialidades
da vida, em uma noite chuvosa.
Nas relações com os objetos, das quais nasce o
fantástico, há uma forte ironia. Em “Imagem”, o espelho devolve ao protagonista
não a sua imagem física, mas uma projeção do modo em que a personagem se vê no
mundo que o rodeia ─ desse modo, o espelho se faz derrisão do social e
dissolução do eu enunciador. Em “O buraco”, a toca do Zé que se transforma em
tatu é abrigo que lhe retira da vida social e familiar, sendo representação do
humano como inescapável misantropia. Em “O fantasma”, o fantasma é o homem
frágil diante de um mundo perverso, pervertido, caótico, construído por homens
sem alma, sem medo, sem inocência.
Em enredos de teor derrisório, irônicos e
autoirônicos como esses, Luiz Vilela nunca se deixa levar pelo melodramático,
pelo panfletário ou apela ao fantástico infantil-infantilizado dos contos de
fada. Até no conto explicitamente marcado por uma retomada antropofágica de
Franz Kafka ─ a óbvio no conto “A Metamorfose”, de modo subliminar com relação
ao romance O Castelo, mas também
e principalmente pela novela “O Covil” ─ , Vilela é dissonante, e entrega algo
novo, com uma técnica unicamente sua.
Três histórias
fantásticas já é um livro amplamente utilizado nas aulas
de leitura com fins de análise textual e gramatical desde a sua primeira edição,
em 2009. Registre-se, de passagem, que tal operacionalização da literatura,
lida sem aparato literários e para outros fins da disciplina Língua Portuguesa,
é um equívoco que afasta os estudantes do texto literário. Entretanto, como as
narrativas de Luiz Vilela apresentam forte apelo diante do público
infanto-juvenil, a leitura de obras como essa Três Histórias Fantásticas constituem excelente porta de
entrada para outras obras literárias de qualidade.
O lançamento de 2009, esgotado, agora ganha, pela
Editora do SESI de São Paulo, caprichada edição - e chega com inesgotável fôlego para
uma nova geração.
Professores, vamos embora formar novos leitores? Luiz Vilela é sempre leitura obrigatória!
OBS.: Outras informações sobre os lançamentos de 2016 de Luiz
Vilela, aqui e aqui.