O suplemento literário Pernambuco
trouxe, em seu último número, do mês de junho, na seção “inéditos”, um
conto de Luiz Vilela, com o título de “Você verá”. Com base em comunicado do
autor, este blog informa que houve um equívoco do jornal: o título do conto
publicado é “Céu estrelado”. “Você verá” é o título de um outro conto de
Vilela, que circulou pela internet e foi depois incluído na antologia coletiva
de contos Bem-vindo, publicado pela Bertrand Brasil, em 2012. Além
disso, é ele o conto que dá título ao novo livro, de contos, de Luiz Vilela, Você
Verá, que sai este ano pela Editora Record.
Abaixo
republicamos o conto “Céu estrelado”.
Céu estrelado
Mesmo sabendo que
naquela noite — véspera de Ano Novo — a estrada não teria muito movimento,
admirava-se do tanto que ela estava calma. A própria noite, carregada e
ameaçadora de chuva nos dias anteriores, irradiava agora a mesma calma, com seu
límpido e estrelado céu.
Era bom dirigir assim,
tranquilo, sem pressa, depois de mil correrias para sair a tempo de chegar
antes da meia-noite, quando todos os da família se reuniriam em sua casa para
comemorar a passagem do ano.
Olhou as horas: quinze
para as dez. Naquela marcha, devia chegar às onze e meia, mais ou menos. Podia
chegar até antes se acelerasse, mas não, não ia acelerar, não ia correr.
"Chega”, disse para
si mesmo, “chega de correr.”
Propósitos de Ano Novo?
Pois ali estava um bom: não correr. E já começara agora, na véspera, a poucas
horas do novo ano, indo assim, bem devagar, contemplando a noite, a estrada — e
lá estava, na frente, um... Veja só, um tatu! Parecia paralisado pela luz dos
faróis. Apagou-os então, de imediato, e desviou o carro para o acostamento.
"Pode passar, meu
caro", ele disse; "antes que alguém passe por cima de você..."
Esperou um pouco. Então
acendeu novamente os faróis, e já não viu mais o tatu. Voltou à estrada e
seguiu.
Um tatu... Há quanto
tempo não via um... Aquela parecia ser mesmo uma noite especial, uma noite...
O celular tocou.
"Alô."
"Bem, onde você
está?"
"Estou na
estrada."
"Que hora que você
chega?"
"Espero chegar à
hora que eu disse: antes da meia-noite."
"Já está quase todo
mundo aqui."
"É?"
"Quase todo
mundo."
"Eu vi um
tatu."
"Tatu? Você matou
ele?"
"Matei. Eu passei
por cima, e ele fez crec!"
"Eco."
"Eu vou levando ele
pra te mostrar..."
"Eu não! Deus me
livre!"
Ele riu.
"Já está quase todo
mundo aqui. Seus irmãos chegaram mais cedo: o Jonas e a Judimar, com as
famílias."
Jonas, o Psicopata, e
Judimar, mar de ignorância, burrice e mentira.
“O Paulo chegou há pouco
e quer o carro para levar a namorada ao clube."
"Ele só aparece
quando precisa de alguma coisa, né? Dinheiro, carro..."
"Como,
bem?..."
"Nada."
"Sabe quem também
está aqui?"
"Quem?"
"A Dona
Ofélia."
"Dona Ofélia? A
troco de quê?"
"Ela pediu para eu
te dizer que ela trouxe as fotos para mostrar para nós, as fotos da viagem que
ela fez ao Egito."
"Egito?"
"Espera aí,
amor..."
Ele esperou.
"Não é Egito, não;
ela está aqui pedindo para eu corrigir: é Patagônia."
"Parecem..."
"É Patagônia,
amor."
"Já ouvi."
"Ela está dizendo
que as fotos são lindas, que as paisagens são maravilhosas, os desertos... Hem?
Como, Dona Ofélia? Espera um pouco, amor..."
"Estou
esperando..."
"A Dona Ofélia vai
falar com você..."
"Sim."
"Boa noite,
José."
"Boa noite, Dona
Ofélia."
"É só para fazer
uma correção: os desertos; a Léa entendeu mal."
"Sei."
"Eu fiz referência
aos desertos do Egito."
"Sim."
"Os desertos do
Egito em contraste com as geleiras da Patagônia."
"Sim."
A linha caiu.
Ele ligou o rádio.
Simon e Garfunkel!
"Hello, darkness, my old friend"...
Ele cantou junto, até o
fim.
Era mesmo uma noite
especial: ligar àquela hora o rádio e dar com Simon e Garfunkel e uma de suas
canções prediletas...
Tinha todos os discos
deles, todos os LPs — mas havia tempos que, por falta de tempo, não os
escutava.
Então outro bom
propósito para o Ano Novo: escutar novamente todos os discos de Simon e
Garfunkel.
Ah, a década de 60!
Quanta coisa... Os sonhos, as lutas, a rebeldia, a coragem, a loucura... O que
ficara de tudo aquilo? O que ficara? E ele? E sua vida?
O celular.
"Amor.”
"Quê."
"Eu quero saber se
eu já posso colocar o pernil no forno."
"Pode."
"Que hora que você
vai chegar?"
"Eu já disse: antes
da meia-noite."
"Então eu já posso
pôr o pernil?"
"Pode."
"Então eu vou pôr,
hem?..."
"Tá."
Ele casara com um par de
peitos. Isso: um par de peitos. Depois vira que, por trás dos peitos, não havia
nada. Ou, melhor, havia, havia sim: havia o nada.
O celular.
"E aí,
campeão?"
"Quem?"
"O Silva."
"Silva?..."
"Sim, meu caro."
"Onde você está,
Silva?"
"Adivinha..."
"Só pode ser na
firma."
"Não, na firma,
não... Sabe onde eu estou?"
"Onde?"
"Sentado
confortavelmente no sofá de sua casa."
"De minha
casa?..."
"Sim, senhor."
"Hum..."
"Eu trouxe os
relatórios para você ler."
"Mas hoje,
Silva?..."
"Não, hoje não;
claro que não... Mas como amanhã é feriado, eu pensei que você já gostaria de
ir dando uma olhada. É só pra agilizar as coisas."
"Hum."
"Só pra agilizar,
entendeu?"
"Sim."
"A perspectiva é
boa, viu?"
"É?"
"Muito boa. A previsão
é de um aquecimento das vendas já a partir de março."
"Sei."
"Está aqui o
relatório; quinhentas páginas."
"Quinhentas?..."
"É, mas é que estão
aqui também os balanços, as planilhas... Está tudo aqui, reunido."
"Hum."
"Você vai ter uma
boa diversão para o feriado; estou até com inveja..."
"É, né?..."
"Ah, Zé, sabe quem
está aqui também?"
"Quem?"
"O Teco."
"Teco?"
"O Teco
Telecoteco."
"Ah."
"Eu encontrei com
ele ontem à noite na rua. Aí eu perguntei: 'Teco, onde você vai passar o
reveillon?' 'Em lugar nenhum', ele respondeu, 'eu vou ficar em casa, quieto no
meu canto.' 'Não vai, não', eu disse; 'você vai comigo lá no Zé.'"
"Hum."
"Ele topou, e agora
ele está aqui também. Ele e a Glorinha, a mulher dele. E o filho, o
Pimentinha."
"Sei..."
"Acho que eu não fiz
mal em convidar, fiz?"
"Não."
"Como?..."
"Eu disse que
não."
"Seja sincero: eu
fiz mal?"
"Claro que não,
Silva!"
"Ele está aqui, ao
meu lado, o Teco. Ele está te mandando um abraço."
"Outro para
ele."
"Você já está
vindo?"
"Já; eu e minha
amiga darkness."
"Quem?..."
"Minha amiga
darkness."
"Os meninos estão
fazendo muito barulho aqui, eu não ouvi direito..."
A linha caiu.
Ele desligou o rádio.
Dez para as onze.
Uma placa: "Não
perca tempo."
Perco sim. Eu agora vou
perder todo o tempo que eu puder. Serei o maior perdedor de tempo do mundo. O
que você está fazendo aí, parado nesse mesa, Zé? Não estou fazendo nada, estou
perdendo tempo, vamos?
Ele riu.
O celular tocou.
"Bem, que história
é essa?"
"Ou vocês param de
me ligar ou eu vou acabar batendo."
"Quem é essa amiga
que está aí com você."
"Amiga?..."
"Essa que está aí
com você."
"Não tem nenhuma
amiga aqui comigo, Léa; você ficou doida?..."
"Tem sim, eu estou
sabendo."
"Como está
sabendo?"
"O Silva me
contou."
"O Silva?..."
"Ele me contou que
você está aí com uma amiga."
"O Silva ficou
maluco; ele não entendeu nada. Você está aí na sala?"
"Estou no banheiro,
e daqui não saio enquanto eu não souber que amiga é essa."
"Está bem; tem,
sim, tem uma amiga aqui comigo: é a darkness."
"Aquela do
escritório?"
"Do
escritório?..."
"A Joana D'Arc, a
Darquinha."
Santo Deus, é hoje...
"Vai cuidar do seu
pernil, Léa; vai cuidar do seu pernil, antes que ele vire carvão."
"Pois que ele vire,
que o pernil vire carvão e que a casa pegue fogo: eu não saio desse banheiro
enquanto eu não souber quem é que está aí com você."
Droga...
"Eu aqui feito uma
idiota, nesse calorão, no meio desse povo, assando um pernil e te esperando
para dar um abraço, e você me traindo com uma colega de serviço..."
"É..."
"Eu sei que é ela,
eu já desconfiava; à hora que eu liguei, eu ouvi a voz dela."
Santa Mãe de Deus...
"Você quer saber de
uma coisa? Quer? Que esse seu carro bata e que você e sua amiga morram
carbonizados e não sobre nada, tá? Nem cinza."
Ela desligou.
Ele passava diante da
mata de eucaliptos, à sua esquerda, e abriu os vidros para deixar entrar o ar
perfumado e revigorante.
Eucaliptus citrodorea...
O celular tocou.
Merda!
"Alô."
"Pai?"
"Sim."
"Que hora que você
chega?"
"Primeiro a gente
diz boa noite; não é, não?"
"Ah, Pai, isso é caretice."
"Caretice,
né?"
"Que hora que você
chega? Estou precisando do carro pra levar a mina no clube; ela está lá na casa
dela, me esperando."
"Hum."
"Eu vou com ela
passar o reveillon. Já são onze horas, você já está chegando?"
"Estou."
"Vê se dá uma acelerada."
"Não, não vou dar
uma acelerada."
"Você está a
quanto?"
"Cinquenta."
"Ah, Pai, vai
curtir com a minha cara, é?"
"E vou passar para
quarenta; depois trinta; depois vinte; depois..."
O celular foi desligado.
Tabuletas, outdoors — a
capital ia aparecendo. Mais quinze minutos e ele estaria à porta de casa.
Quando viu, no
horizonte, a comprida faixa de luzes, desviou o carro para o acostamento e
parou. Apagou os faróis e ficou algum tempo quieto.
Então deu meia-volta:
atravessou a pista e entrou pela estradinha de terra que ia dar na mata de
eucaliptos. Quando chegou em frente à mata, ele novamente parou.
Olhou as horas: onze e
meia.
Pegou o celular e
teclou.
"Léa, eu tive um
problema aqui; eu só vou chegar mais tarde."
"Eu sabia."
"Sabia?"
"Sabia que você não
ia chegar."
"Então está
bem."
Ela desligou.
Ele encostou a cabeça no
banco, fechou os olhos e ficou ali, na escuridão, esperando passar o tempo,
esperando o Ano Novo passar.