sábado, 22 de junho de 2013

CORRIGINDO UM EQUÍVOCO

           O suplemento literário Pernambuco trouxe, em seu último número, do mês de junho, na seção “inéditos”, um conto de Luiz Vilela, com o título de “Você verá”. Com base em comunicado do autor, este blog informa que houve um equívoco do jornal: o título do conto publicado é “Céu estrelado”. “Você verá” é o título de um outro conto de Vilela, que circulou pela internet e foi depois incluído na antologia coletiva de contos Bem-vindo, publicado pela Bertrand Brasil, em 2012. Além disso, é ele o conto que dá título ao novo livro, de contos, de Luiz Vilela, Você Verá, que sai este ano pela Editora Record.
            Abaixo republicamos o conto “Céu estrelado”.





Céu estrelado


Mesmo sabendo que naquela noite — véspera de Ano Novo — a estrada não teria muito movimento, admirava-se do tanto que ela estava calma. A própria noite, carregada e ameaçadora de chuva nos dias anteriores, irradiava agora a mesma calma, com seu límpido e estrelado céu.
Era bom dirigir assim, tranquilo, sem pressa, depois de mil correrias para sair a tempo de chegar antes da meia-noite, quando todos os da família se reuniriam em sua casa para comemorar a passagem do ano.
Olhou as horas: quinze para as dez. Naquela marcha, devia chegar às onze e meia, mais ou menos. Podia chegar até antes se acelerasse, mas não, não ia acelerar, não ia correr.
"Chega”, disse para si mesmo, “chega de correr.”
Propósitos de Ano Novo? Pois ali estava um bom: não correr. E já começara agora, na véspera, a poucas horas do novo ano, indo assim, bem devagar, contemplando a noite, a estrada — e lá estava, na frente, um... Veja só, um tatu! Parecia paralisado pela luz dos faróis. Apagou-os então, de imediato, e desviou o carro para o acostamento.
"Pode passar, meu caro", ele disse; "antes que alguém passe por cima de você..."
Esperou um pouco. Então acendeu novamente os faróis, e já não viu mais o tatu. Voltou à estrada e seguiu.
Um tatu... Há quanto tempo não via um... Aquela parecia ser mesmo uma noite especial, uma noite...
O celular tocou.
"Alô."
"Bem, onde você está?"
"Estou na estrada."
"Que hora que você chega?"
"Espero chegar à hora que eu disse: antes da meia-noite."
"Já está quase todo mundo aqui."
"É?"
"Quase todo mundo."
"Eu vi um tatu."
"Tatu? Você matou ele?"
"Matei. Eu passei por cima, e ele fez crec!"
"Eco."
"Eu vou levando ele pra te mostrar..."
"Eu não! Deus me livre!"
Ele riu.
"Já está quase todo mundo aqui. Seus irmãos chegaram mais cedo: o Jonas e a Judimar, com as famílias."
Jonas, o Psicopata, e Judimar, mar de ignorância, burrice e mentira.
“O Paulo chegou há pouco e quer o carro para levar a namorada ao clube."
"Ele só aparece quando precisa de alguma coisa, né? Dinheiro, carro..."
"Como, bem?..."
"Nada."
"Sabe quem também está aqui?"
"Quem?"
"A Dona Ofélia."
"Dona Ofélia? A troco de quê?"
"Ela pediu para eu te dizer que ela trouxe as fotos para mostrar para nós, as fotos da viagem que ela fez ao Egito."
"Egito?"
"Espera aí, amor..."
Ele esperou.
"Não é Egito, não; ela está aqui pedindo para eu corrigir: é Patagônia."
"Parecem..."
"É Patagônia, amor."
"Já ouvi."
"Ela está dizendo que as fotos são lindas, que as paisagens são maravilhosas, os desertos... Hem? Como, Dona Ofélia? Espera um pouco, amor..."
"Estou esperando..."
"A Dona Ofélia vai falar com você..."
"Sim."
"Boa noite, José."
"Boa noite, Dona Ofélia."
"É só para fazer uma correção: os desertos; a Léa entendeu mal."
"Sei."
"Eu fiz referência aos desertos do Egito."
"Sim."
"Os desertos do Egito em contraste com as geleiras da Patagônia."
"Sim."
A linha caiu.
Ele ligou o rádio.
Simon e Garfunkel!
"Hello, darkness, my old friend"...
Ele cantou junto, até o fim.
Era mesmo uma noite especial: ligar àquela hora o rádio e dar com Simon e Garfunkel e uma de suas canções prediletas...
Tinha todos os discos deles, todos os LPs — mas havia tempos que, por falta de tempo, não os escutava.
Então outro bom propósito para o Ano Novo: escutar novamente todos os discos de Simon e Garfunkel.
Ah, a década de 60! Quanta coisa... Os sonhos, as lutas, a rebeldia, a coragem, a loucura... O que ficara de tudo aquilo? O que ficara? E ele? E sua vida?
O celular.
"Amor.”
"Quê."
"Eu quero saber se eu já posso colocar o pernil no forno."
"Pode."
"Que hora que você vai chegar?"
"Eu já disse: antes da meia-noite."
"Então eu já posso pôr o pernil?"
"Pode."
"Então eu vou pôr, hem?..."
"Tá."
Ele casara com um par de peitos. Isso: um par de peitos. Depois vira que, por trás dos peitos, não havia nada. Ou, melhor, havia, havia sim: havia o nada.
O celular.
"E aí, campeão?"
"Quem?"
"O Silva."
"Silva?..."
"Sim, meu caro."
"Onde você está, Silva?"
"Adivinha..."
"Só pode ser na firma."
"Não, na firma, não... Sabe onde eu estou?"
"Onde?"
"Sentado confortavelmente no sofá de sua casa."
"De minha casa?..."
"Sim, senhor."
"Hum..."
"Eu trouxe os relatórios para você ler."
"Mas hoje, Silva?..."
"Não, hoje não; claro que não... Mas como amanhã é feriado, eu pensei que você já gostaria de ir dando uma olhada. É só pra agilizar as coisas."
"Hum."
"Só pra agilizar, entendeu?"
"Sim."
"A perspectiva é boa, viu?"
"É?"
"Muito boa. A previsão é de um aquecimento das vendas já a partir de março."
"Sei."
"Está aqui o relatório; quinhentas páginas."
"Quinhentas?..."
"É, mas é que estão aqui também os balanços, as planilhas... Está tudo aqui, reunido."
"Hum."
"Você vai ter uma boa diversão para o feriado; estou até com inveja..."
"É, né?..."
"Ah, Zé, sabe quem está aqui também?"
"Quem?"
"O Teco."
"Teco?"
"O Teco Telecoteco."
"Ah."
"Eu encontrei com ele ontem à noite na rua. Aí eu perguntei: 'Teco, onde você vai passar o reveillon?' 'Em lugar nenhum', ele respondeu, 'eu vou ficar em casa, quieto no meu canto.' 'Não vai, não', eu disse; 'você vai comigo lá no Zé.'"
"Hum."
"Ele topou, e agora ele está aqui também. Ele e a Glorinha, a mulher dele. E o filho, o Pimentinha."
"Sei..."
"Acho que eu não fiz mal em convidar, fiz?"
"Não."
"Como?..."
"Eu disse que não."
"Seja sincero: eu fiz mal?"
"Claro que não, Silva!"
"Ele está aqui, ao meu lado, o Teco. Ele está te mandando um abraço."
"Outro para ele."
"Você já está vindo?"
"Já; eu e minha amiga darkness."
"Quem?..."
"Minha amiga darkness."
"Os meninos estão fazendo muito barulho aqui, eu não ouvi direito..."
A linha caiu.
Ele desligou o rádio.
Dez para as onze.
Uma placa: "Não perca tempo."
Perco sim. Eu agora vou perder todo o tempo que eu puder. Serei o maior perdedor de tempo do mundo. O que você está fazendo aí, parado nesse mesa, Zé? Não estou fazendo nada, estou perdendo tempo, vamos?
Ele riu.
O celular tocou.
"Bem, que história é essa?"
"Ou vocês param de me ligar ou eu vou acabar batendo."
"Quem é essa amiga que está aí com você."
"Amiga?..."
"Essa que está aí com você."
"Não tem nenhuma amiga aqui comigo, Léa; você ficou doida?..."
"Tem sim, eu estou sabendo."
"Como está sabendo?"
"O Silva me contou."
"O Silva?..."
"Ele me contou que você está aí com uma amiga."
"O Silva ficou maluco; ele não entendeu nada. Você está aí na sala?"
"Estou no banheiro, e daqui não saio enquanto eu não souber que amiga é essa."
"Está bem; tem, sim, tem uma amiga aqui comigo: é a darkness."
"Aquela do escritório?"
"Do escritório?..."
"A Joana D'Arc, a Darquinha."
Santo Deus, é hoje...
"Vai cuidar do seu pernil, Léa; vai cuidar do seu pernil, antes que ele vire carvão."
"Pois que ele vire, que o pernil vire carvão e que a casa pegue fogo: eu não saio desse banheiro enquanto eu não souber quem é que está aí com você."
Droga...
"Eu aqui feito uma idiota, nesse calorão, no meio desse povo, assando um pernil e te esperando para dar um abraço, e você me traindo com uma colega de serviço..."
"É..."
"Eu sei que é ela, eu já desconfiava; à hora que eu liguei, eu ouvi a voz dela."
Santa Mãe de Deus...
"Você quer saber de uma coisa? Quer? Que esse seu carro bata e que você e sua amiga morram carbonizados e não sobre nada, tá? Nem cinza."
Ela desligou.
Ele passava diante da mata de eucaliptos, à sua esquerda, e abriu os vidros para deixar entrar o ar perfumado e revigorante.
Eucaliptus citrodorea...
O celular tocou.
Merda!
"Alô."
"Pai?"
"Sim."
"Que hora que você chega?"
"Primeiro a gente diz boa noite; não é, não?"
"Ah, Pai, isso é caretice."
"Caretice, né?"
"Que hora que você chega? Estou precisando do carro pra levar a mina no clube; ela está lá na casa dela, me esperando."
"Hum."
"Eu vou com ela passar o reveillon. Já são onze horas, você já está chegando?"
"Estou."
"Vê se dá uma acelerada."
"Não, não vou dar uma acelerada."
"Você está a quanto?"
"Cinquenta."
"Ah, Pai, vai curtir com a minha cara, é?"
"E vou passar para quarenta; depois trinta; depois vinte; depois..."
O celular foi desligado.
Tabuletas, outdoors — a capital ia aparecendo. Mais quinze minutos e ele estaria à porta de casa.
Quando viu, no horizonte, a comprida faixa de luzes, desviou o carro para o acostamento e parou. Apagou os faróis e ficou algum tempo quieto.
Então deu meia-volta: atravessou a pista e entrou pela estradinha de terra que ia dar na mata de eucaliptos. Quando chegou em frente à mata, ele novamente parou.
Olhou as horas: onze e meia.
Pegou o celular e teclou.
"Léa, eu tive um problema aqui; eu só vou chegar mais tarde."
"Eu sabia."
"Sabia?"
"Sabia que você não ia chegar."
"Então está bem."
Ela desligou.
Ele encostou a cabeça no banco, fechou os olhos e ficou ali, na escuridão, esperando passar o tempo, esperando o Ano Novo passar.

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