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Sabino, um mestre sem imaginação
Hoje faz dois anos que morreu Fernando Sabino. Amanhã faz 83 anos que Fernando Sabino nasceu. Tudo isso e mais o carnaval feito pelo caderno “Prosa e verso” do “Globo” com o romance “O encontro marcado” – tratado, a meu ver com exagero, como se fosse um “Grande sertão” ou um “Dom Casmurro” – me motivaram a entrar no debate republicando um artigo que escrevi assim que soube da morte do escritor mineiro. Fica como contribuição à tarefa nada simples de pôr em perspectiva o legado de Sabino:
O jornalista e escritor Humberto Werneck tem razão: é injusta a cobrança que perseguiu Fernando Sabino ao longo de sua carreira, porque “nenhum escritor tem a obrigação de escrever mais que um bom livro”. Werneck completa seu raciocínio com estilo e contundência: “Se todo romancista fizesse um romance da envergadura de ‘O encontro marcado’, o Brasil teria a maior literatura do mundo”.
Posta a questão nesses termos, é difícil discordar. Lançado quando o escritor tinha só 32 anos, “O encontro marcado” é um romance que bastaria para justificar qualquer obra. Mesmo assim, fica faltando dizer alguma coisa. Por que Fernando Sabino, depois de um vôo tão ambicioso, guardou as asas no sótão e mergulhou de cabeça, livro após livro, década após década, na ligeireza da crônica?
Não vale dar aquela resposta politicamente correta de que crônica e romance têm o mesmo peso e que é absurdo – onde já se viu? – estabelecer uma escala de valores para gêneros literários. Argumentos bobos como esse não nos levarão a lugar nenhum. Se é inegável que uma obra-prima da crônica valerá sempre mais que uma dúzia de romances medíocres, também é certo que a tal escala de valores tem existência cristalina, por força da mesma tradição em que se fundam os gêneros, a própria história da literatura.
Uma resposta ao quebra-cabeça de Fernando Sabino talvez pudesse ser enunciada nos seguintes termos: escritor de prosa soberba, mas sem imaginação, ele foi romancista enquanto teve assunto – sua própria vida, mal disfarçada, em “O encontro marcado”, na pele de Eduardo Marciano. Ao contrário do que julga o senso comum, uma imaginação frágil não é necessariamente pecado mortal na literatura. William Faulkner dizia que um escritor precisa de três coisas: experiência, observação e imaginação. Mas ressalvava que, na falta de um ou mesmo dois desses atributos, é possível sair-se bastante bem com o(s) restante(s).
Pois bem. Esgotado o filão da experiência, e na falta de uma imaginação poderosa, Fernando Sabino viu-se restrito à observação, isto é, aos tiros curtos, às “balas de estalo” – se quisermos ser machadianos – dos casos pitorescos que colhia em seu próprio cotidiano, na leitura de jornais, nas conversas de bar. É verdade que o formato não admitia fôlego longo, nem na horizontal nem na vertical – nem no sentido dos painéis sociais, nem no do aprofundamento psicológico dos personagens. No entanto, era um veículo tão bom quanto qualquer outro para aquilo que Sabino tinha de mais brilhante e inimitável, sua maior contribuição à literatura brasileira: a capacidade de prosear numa linguagem direta, enxuta e solar, de sintaxe “natural” e vocabulário ao alcance de qualquer criança. Uma língua sob cuja simplicidade se esconde toda a sofisticação do mundo.
É nesse sentido, e apenas nele, que a teoria da “equivalência dos gêneros” faz sentido. Pela mesma razão, a boa frase de Humberto Werneck merece reparo. Maior que “O encontro marcado”, pairando acima dos gêneros e presente até no execrado e execrável “Zélia, uma paixão” – Sabino era e continuará sendo sobretudo um estilo. Trata-se de um legado tão desmedido que tende a ficar invisível, confundido com a paisagem. É preciso ouvir de um autor refinado como, por exemplo, o contista Luiz Vilela a afirmação de que aprendeu a escrever com Fernando Sabino – nada menos que isso – para começar a pôr na devida perspectiva o que fez esse mineiro pela língua literária brasileira.
É possível que tal proeza esteja meio fora de moda. Depois de jornadas contraculturais, fica impossível negar o que há de ideologia burguesa – ou de otimismo ingênuo, o que dá no mesmo – na idéia de que tudo pode ser expressado de forma “perfeita”, com as palavras mais simples do dicionário, para que todo mundo entenda. Embora raciocínios lineares como este sejam sempre discutíveis, digamos, para efeito de argumentação, que já deixamos tais ilusões do século 20 para trás. Ainda assim, não termos realizado aquela proeza seria trágico.
Na literatura americana, papel semelhante – numa geração anterior, como costuma acontecer – coube a Ernest Hemingway. Como ele, Sabino não trabalhou sozinho. O autor de “Por quem os sinos dobram” tinha o poeta Walt Whitman na estante e um companheiro de geração chamado Dashiell Hammett. O autor de “O homem nu” tinha Graciliano Ramos na prateleira e um contemporâneo do tamanho de João Cabral. Entre muitos outros. Se a obra é coletiva, seu símbolo termina por ser sempre individual. Nos EUA, quando se quer qualificar a prosa neo-realista em que as palavras, mais do que nomear, parecem ser as próprias coisas, tamanha sua precisão – quando se quer dar nome a isso, invoca-se Ernest Hemingway.
No Brasil, o nome será para sempre o de Fernando Sabino.
Sérgio Rodrigues, site Todoprosa.
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