sexta-feira, 14 de setembro de 2012

LUIZ VILELA: 55 ANOS DE FICÇÃO

“A CABEÇA”, DE LUIZ VILELA, FAZ 10 ANOS

              Há 10 anos, em julho de 2002, Luiz Vilela publicava seu sexto livro de contos, A Cabeça, pela editora Cosac & Naify. O lançamento ocorreu no Bar Balcão, em São Paulo. Houve depois outros dois lançamentos, em Belo Horizonte e em Curitiba.
         Damos abaixo uma foto do autor com sua obra, duas fotos do lançamento em São Paulo, um apanhado das críticas sobre o livro e a entrevista, com o texto revisto e corrigido, que Luiz Vilela deu, na época, ao jornal Rascunho.
         Em Belo Horizonte, a Rede Minas dedicou ao livro um de seus programas “Livro Aberto”, com entrevista do autor, comentários de pessoas convidadas e breves encenações de alguns contos.
          Seis adaptações já foram feitas até agora de contos do livro, por diferentes diretores, para o cinema e a televisão, além de adaptações para o teatro e para HQ.





"Luiz Vilela confirma ser um dos maiores contistas do país com A cabeça, livro em que mostra raro domínio da técnica do diálogo.”
Almir de Freitas, Bravo!.


          “Dez contos magistrais: sim, existe grande escritor fora do eixo Rio-SP e dos holofotes da mídia.”
          Luiz Roberto Guedes, Trip.


“Os diálogos mais parecidos com a vida que a literatura brasileira já produziu.”
Sérgio Rodrigues, Jornal do Brasil.


         “O livro de Luiz Vilela tem uma grande importância não porque seja um livro extraordinário, mas porque pisa fundo, e com finíssimo sarcasmo, no centro da ferida de nosso meio literário.”
         José Castello, O Estado de S. Paulo.


“Esses contos proporcionam uma surpresa ao leitor: relembrar o poder que frases perfeitamente triviais têm para seduzir, coagir e enganar.”
Carlos Graieb, Veja.


“São textos construídos em cascatas de conversas que se sucedem e surpreendem, logo no início, no meio ou no fim, ao desnudarem desejos e comportamentos humanos que costumam ser camuflados, escondidos como sujeira ou um corpo morto, debaixo do tapete imaculado da sala.”
Cecília Costa, O Globo.


“O tema preferido de Luiz Vilela é o contato humano.”
          Francesca Angiolillo, Folha de S.Paulo.


“Na busca da fluência de uma escrita enxuta, Vilela cria uma musicalidade que envolve o leitor aos poucos, à medida que seus personagens costuram conversas reveladoras. São situações prosaicas, mas que captam o fluxo da vida sob o véu das aparências.”
Ivan Cardoso, Istoé.


          “Habitante de um território único em nossa ficção, o mineiro Luiz Vilela é dono de um estilo cristalino como a água de um rio de montanha.”
          Miguel Sanches Neto, Rascunho.


“O maior fabricante de diálogos da literatura brasileira.”
Paulo Paniago, Correio Braziliense.
           

“Mesquinharias, sonhos, devaneios, ganância, devassidão, corrupção, violência — um amplo painel construído com um vigor incomum na literatura nacional.”
           Néri Pedroso, A Notícia.


“Uma prosa cortante.”
Roberto Nicolato, A Gazeta.


“As narrativas, aparentemente despretensiosas, são sofisticadas armadilhas, armadas pela ironia ou pelo humor, que prendem o leitor e o levam a refletir sobre a vida e sobre o que fazemos dela.”
          Francisco de Morais Mendes, O Tempo.


“Vilela, com sua prosa límpida e fluente, é mesmo um excelente contador de histórias. Será necessário mais do que isso?”
Mário Pereira, Diário Catarinense.


“Sua literatura é uma grande invasão à mente e ao coração daqueles que sabem se entregar à voz do escritor. Invasão elaborada com vozes, silêncios e artimanhas literárias dignas de um mestre.”
Valéria Lamego, Veredas.


          “Um soco no estômago do formalismo e um tapa na inconsequência moral da classe média.”
          João Paulo Cunha, Estado de Minas.


“A inconfundível habilidade de Luiz Vilela em retratar o meandro das conversas e o subentendido dos diálogos está mais uma vez presente em seu novo livro, A cabeça.”
Maurício Moreira, Weblivros.


“Vilela, assim, mostra-se um contista absolutamente contemporâneo, revelador de recalques, temores e truculências que assustam e paralisam o nosso tempo — um tempo que parece não ter passado e que não se permite nenhum futuro.”
          Haroldo Ceravolo Sereza, estadao.com.br.


“Os diálogos precisos, fartamente estudados e traduzidos, encontram um lugar de destaque nesses novos textos.”
Whisner Fraga, Brasília Literária.


          “O ritmo dramático apresenta sequências onde o aleatório e o ‘nonsense’ se somam a uma certa crueldade cínica e perversa.”
          Nízia Villaça, Rio Letras.


“Eis a fala mansa de um ficcionista que impressiona exatamente pelo modo imperturbável — e impecável — com que cria contos.”
          Paulo Bentancur, www.bestiario.com.br.


          "Vilela faz de seus contos a geometria do silêncio.”
Rogério Pereira, Jornal do Estado.


          “Os personagens de Vilela são sujeitos que, numa falsa tranquilidade, escondem tormentos.”
          Cláudia Chalita Azevedo, Scripta.


          “Textos densos e fortes, que criticam com veemência a mediocridade humana.”
          Alécio Cunha, Hoje em Dia.


          “Os dez contos deste livro evidenciam a maestria de Vilela no domínio da tessitura narrativa, com diálogos bem armados, não-ditos reveladores e situações cheias de ambiguidade, acidez e humor.”
          Bravo! Edição 100 — O Ranking do Melhor da Cultura em Oito Anos.





LUIZ VILELA: entrevista a Marcio Renato dos Santos, para o jornal “Rascunho”, de Curitiba, em 25 de julho de 2002.

              — A cabeça reúne contos inéditos e outros já publicados em jornais e revistas como a Folha de S.Paulo e a Playboy. O senhor quis, nesses contos, mostrar e tratar de questões contemporâneas?
              — O que eu quis nesses contos foi o que eu sempre quis em tudo o que eu escrevi até hoje: contar histórias. Nada mais, nada menos. Agora, como a matéria de minhas histórias é o que acontece comigo e com as outras pessoas em nosso mundo e nossa época, é natural que nelas as questões contemporâneas apareçam. Quem viu bem isso foi o Wilson Martins, em página que coloco entre as duas ou três melhores que já se escreveram até hoje sobre a minha obra e que figura, atualmente, na introdução ao livro Os melhores contos de Luiz Vilela. Vou citar um trecho, e o faço também como uma homenagem ao grande crítico, que vive em Curitiba. Diz o Wilson: "O contexto de leitura é, pois, tão decisivo quanto o texto na eficácia artística do conto; na literatura brasileira do século XX, a arte de Luiz Vilela extrai a sua autenticidade e grandeza estética das mesmas fontes de onde Maupassant extraía as suas na literatura francesa do século XIX, isto é, a vida social nos seus aspectos característicos, a diversidade psicológica, o sistema de valores. Não se trata, bem entendido, da ficção de costumes; trata-se da imagem do homem em cada momento dado." É isto, principalmente isto: a imagem do homem em cada momento dado.

              — Todos os contos de A cabeça são dialogados, e esse é o aspecto formal que mais tem chamado a atenção da crítica, pois, pelo que se sabe, não há nenhum outro livro de contos na literatura brasileira e, possivelmente, na estrangeira também, igual a esse. Já na década de 80, um brasilianista, Jon M. Tolman, se referia ao senhor como “talvez o melhor escritor de diálogo do Brasil”. E agora, a propósito do novo livro, um crítico mineiro disse que seu diálogo é “sem paralelo na atual literatura nacional”. Como o senhor conseguiu chegar a esse diálogo?
         — É, de fato, todo o mundo fala no diálogo. Ainda no último número da Veja, por exemplo, que recomenda a leitura de A cabeça, o comentarista, Carlos Graieb, faz todo o seu comentário em torno do diálogo, começando, aliás, pela jocosa observação de que isso “já deve estar dando bocejos no escritor mineiro de 60 anos”. Ops! Sessenta ainda não, 60 só depois de 31 de dezembro, quando então passarei, eu também, quem diria, a ser um sexagenário, palavra que, na minha mente, representa uma sinistra aglutinação de sexo (problemas com), oxigênio (falta de) e otário (começo da demência senil). Parodiando o Poeta: 60 anos, não sou bastante velho para merecer-vos! Mas, voltando à Veja, as observações são tão boas que eu gostaria de repeti-las aqui, não fosse correr o risco de transformar esta entrevista numa colcha de retalhos da crítica. Diz ele, por exemplo, que o diálogo é uma arte muito difícil, “o supremo artifício”, na expressão de Hemingway, autor citado muito a propósito, já que é um dos maiores mestres do diálogo, só perdendo, hoje, para Luiz Vilela... Antes que me chamem de o rei dos cabotinos e que eu esclareça que isso é apenas uma brincadeira, quero dizer que Hemingway é uma das minhas maiores devoções no santuário da literatura e que foi com ele, não só com ele, é claro, mas principalmente com ele, que eu aprendi a escrever diálogo. Há também, para concluir o assunto, há também que se ter, como em tudo o mais na arte, uma predisposição natural para a coisa, um dom, um gosto especial por ela, e isso eu certamente tenho em relação ao diálogo. O mais é trabalho, muito trabalho, um trabalho, na verdade, infinito, pois sempre se pode ir além...

           — Todos comentam também o seu estilo, seco, ágil e veloz, um estilo afinado com o clima de nossa época. O senhor teve essa preocupação, de que o seu estilo refletisse a nossa época?
         — Acredito que o meu estilo seja realmente afinado com a nossa época, mas isso não foi uma preocupação minha. O estilo é o homem, diz a velha e tão citada frase de Buffon. Nesse sentido, meu estilo sou eu, meu estilo é o que eu sou, e o que eu sou é tudo aquilo com que nasci e o que fui adquirindo. E é aí que entra a formação literária, os autores que lemos nos nossos começos. Em meu caso, três autores foram fundamentais para a formação de meu estilo: Graciliano Ramos, Rubem Braga e Fernando Sabino. E, abstraindo de mim, atrevo-me a dizer que ninguém poderá escrever boa prosa no Brasil se não tiver lido esses três autores. E há também, com relação ao estilo, a carga genética, que todo autor, como toda pessoa, traz. Eu não fujo à regra. A esse respeito, vou contar aqui um episódio interessante. Em 1969, quando eu estava nos Estados Unidos, em Iowa City, participando do International Writing Program, mandei um dia uma carta a meu pai, na qual eu perguntava uma porção de coisas. Passados alguns dias, recebi a resposta: uma página de bloco, mas lá estava, de maneira clara e precisa, respondido tudo o que eu perguntara. Um verdadeiro nocaute. Meu pai, devo esclarecer, era engenheiro-agrônomo, lia muito e tinha a preocupação de escrever corretamente, mas nunca manifestara nenhum interesse pela literatura, nem para a ler nem para escrever. É importante dizer também que, mais humanamente, mais prosaicamente, sua brevidade tinha muito a ver com a preguiça de escrever cartas. Estas, principalmente as cartas para os filhos, quando quase todos estavam estudando fora, eram escritas por minha mãe, normalista e professora, cartas que, apesar do estilo, sóbrio também, às vezes ocupavam várias páginas, davam notícias de tudo, com detalhes, e eram chamadas por meu pai, com um humor carinhoso e, talvez, com uma pontinha de inveja, de “jornais”. Meu pai já morreu, há dezessete anos, com a idade de 86. Minha mãe, viva ainda, se aproxima, forte e lúcida, dos 98. Por um problema na vista, ela já não pode mais ler nem escrever. Mas, também, diabo, não há mais nenhum filho estudando fora e a esperar, ansioso, por suas cartas...

              — Os contos de A cabeça, como os de outros livros também, são ambientados em lugar nenhum, e, por isso mesmo, em todos os lugares. Não vemos neles uma cidade, porque vemos todas...
              — É, é assim mesmo. Sua observação é perfeita e me fez lembrar de uma outra, feita há mais de vinte anos, por Manoel Nascimento, na revista IstoÉ, numa resenha de meu livro de contos, então lançado, o Lindas pernas. Disse ele: "Seus contos poderiam situar-se em qualquer lugar — em Minas, em qualquer metrópole ou num boulevard parisiense. Constrói de maneira fácil os momentos mais difíceis, cômicos ou dramáticos, de qualquer ser humano." É isso. São esses momentos mais difíceis, cômicos ou dramáticos, que me interessam. Ou, como disse a jornalista da Folha de S.Paulo, Francesca Angiolillo, falando sobre A cabeça: "o tema preferido de Luiz Vilela: o contato humano". Voltando, porém, à resenha da IstoÉ, não resisto a citar aqui o restante dela, também muito oportuno: "Mas esta simplicidade é só aparente. O conto, para ele, não é a construção da trama para um desfecho enigmático, mas a construção em si mesma, como em Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, seus colegas de santíssima trindade."

          — Sua literatura tem força, tem vida. O senhor olha a vida e escreve? O que está nos seus livros foram as suas experiências, transformadas em arte?
           — Essa é uma pergunta que sempre nos fazem, a nós, escritores de ficção. Falando de uma maneira geral, o que está nos meus livros é real e não é, aconteceu e não aconteceu. Há coisas que estão neles que foram inteiramente reais. Outras que foram inteiramente inventadas. E outras, ainda, que têm uma parte de realidade e uma parte de invenção. Às vezes é difícil até para mim mesmo, o autor, distinguir, anos depois, o que reproduzi da realidade e o que inventei. De qualquer forma, eu escrevo ficção, escrevo romances, novelas e contos, e não reportagem, biografia, história. Ainda assim, a questão permanece, uma questão complexa e complicada. Poesia e Verdade, disse Goethe, no famoso título. Lembremo-nos também dos tão citados versos de Pessoa, "o poeta é um fingidor". Seja como for, o fato de eu sempre me basear na realidade para escrever já me trouxe algumas dores de cabeça, principalmente com relação a dois romances: Os novos, que fala de minha geração, em Belo Horizonte, na década de 60, e O inferno é aqui mesmo, que fala de minha experiência como jornalista, em São Paulo, no Jornal da Tarde. Numa reportagem de capa da revista IstoÉ/Minas, dedicada a um encontro que houve em Belo Horizonte, em 1993, de escritores e jornalistas mineiros, os autores da matéria, a certa altura e falando a meu respeito, dizem que o Inferno "até hoje costuma atormentar seus companheiros da época". Isso, depois de mais de dez anos da publicação do livro. Só pude achar graça... No caso de Os novos, um amigo meu, o escritor e jornalista Wander Piroli, me contou uma vez, pelos anos 70, certamente com o exagero que lhe é característico, que uma noite, na Lanchonete, ponto central de Belo Horizonte, onde quase todo o mundo se encontrava, "todos” os meus amigos se reuniram para falar mal de Os novos. E ele terminava, com um risinho sacana: "Você não tem lá um exemplar pra me arrumar? Fiquei com vontade de ler o livro..."

           — Como era Luiz Vilela antes de ser o Luiz Vilela que a literatura revelou? Como o senhor chegou à literatura? O senhor começou a ler muito cedo? E com que idade começou a escrever?
           — Vamos por partes, e como essas perguntas já me foram feitas muitas vezes, eu vou ter de repetir aqui o que também muitas vezes já respondi. Eu era, lá em casa, o caçula. Meus pais e meus cinco irmãos, todos, sem exceção, gostavam de ler, e cada um tinha a sua pequena estante de livros. Livro é o que não faltava lá em casa. A casa era grande e, por onde se andasse, se esbarrava com algum livro. Sem mentira, houve uma época em que se encontrava livro até no galinheiro, na casinha das galinhas. Então era mais do que natural que eu desde muito cedo começasse a ler. E houve, então, uma passagem que ficou célebre na família. É que, no primeiro dia de aula, quando a professora pediu que eu lesse a cartilha, eu perguntei se ela queria que eu lesse a primeira lição ou a última, pois, tendo aprendido sozinho a ler, eu já tinha lido toda a cartilha antes de entrar para a escola. Bem, aí foi livro atrás de livro, variando de acordo com os interesses da idade, até chegar a adolescência, quando então, num belo dia, nos meus 13 anos, depois de ter lido tantas histórias de tão diferentes autores, resolvi escrever também algumas. Foi uma descoberta, uma empolgação, um deslumbramento. Alguma coisa nascera dentro de mim aquela hora, como se eu passasse a ser um outro. E passara mesmo: eu passara a ser um escritor, um criador, uma espécie de deus. E aí, bom, aí eu não parei mais. E comecei a publicar. Primeiro, num jornal de estudantes, A Voz dos Estudantes, um pequeno artigo intitulado "A boa leitura". Aos 14, o meu primeiro conto, "Escola de roça", num jornal da cidade, o Correio do Pontal. Aos 15 tornei-me cronista do nosso principal jornal, Folha de Ituiutaba, para o qual eu mandava de Belo Horizonte, onde fora morar, na continuação de meus estudos, toda semana, uma crônica, publicando nele também dois contos. Aos 18 publiquei um conto no jornal Filosofia, dos alunos da Faculdade de Filosofia, faculdade na qual eu ingressara. Aos 20 comecei a publicar contos na "página dos novos", do Estado de Minas, e também ganhei, por duas vezes, o concurso de contos de outro jornal diário, o Correio de Minas. Aos 21 criei, com outros jovens escritores que eu conhecera, uma revista de contos, Estória, e um jornal literário de vanguarda, Texto, publicações que marcaram época. Nessa mesma ocasião, passei a colaborar com o Suplemento Literário do Minas Gerais, recém-criado e que ficaria famoso. Aos 24, à minha custa, publiquei o meu primeiro livro, Tremor de terra.

        — Houve algum fato ou alguma pessoa em seus começos que estimulou o senhor a ser escritor?
           — Essa é também uma pergunta que sempre me fazem, e vou contar aqui o que também já contei em outros lugares. Houve, sim, houve dois fatos, com duas pessoas diferentes, que foram importantíssimos para mim e que, se posso dizer assim, me confirmaram em minha vocação de escritor. O primeiro aconteceu no Ginásio São José, na 4.ª série ginasial. Numa prova escrita de Português, o professor, Padre Luciano Orlando Giovanni, pediu uma redação. Em vez da redação, eu escrevi um pequeno conto. Alguns dias depois, ele devolveu a prova, corrigida e com uma pequena observação, escrita com tinta vermelha, no alto e no canto da página: "Você tem pinta de bom escritor. Cultive essa qualidade com boas leituras." Pouco mais de um ano depois, em Belo Horizonte, no curso clássico, no Colégio Marconi e, mais uma vez, numa prova escrita de Português, eu de novo escrevi um pequeno conto. No dia da prova oral, a sala cheia de alunos e eu, tímido, sentado, como gostava, lá no fundo, na última carteira, o professor, Antonio Salles Filho, um excelente professor mas meio temido por ser muito irônico, antes de começar o exame, correu o olhar por toda a sala, como se procurasse por alguém, e então, como ele tinha entrado no segundo semestre e não conhecia bem ainda os alunos, perguntou: "Quem é o Luiz Junqueira Vilela?" Eu, morrendo de medo e o coração disparando, ergui o dedo. Ele então disse: "Vai embora! Você não precisa fazer prova, não! Eu te dei dez na prova escrita e vou te dar dez aqui também, na prova oral! Sua redação está um colosso! Há anos que eu não leio uma redação como a sua! Vai, vai embora!" Eu me levantei e, sob o olhar estupefato dos alunos naquela sala repleta, saí, pisando em nuvens, e assim foi até eu chegar em casa, na república de estudantes onde eu morava. Levei ainda umas boas horas até conseguir pôr de novo os pés no chão...

     — E ter ganho o Prêmio Nacional de Ficção, de 1967, em Brasília, derrotando 250 escritores, alguns deles já consagrados, como o José Geraldo Vieira, o José Condé, o Mário Palmério e outros mais, o que isso significou para o senhor?
          — Significou muito, claro. Foi, se posso dizer assim, a minha consagração, pois os grandes jornais deram a notícia e me vi, da noite para o dia, conhecido em todo o Brasil, tendo sido depois apontado pelos críticos como a Revelação Literária do Ano. O prêmio, na época, ganhou proporções de escândalo porque alguns dos figurões que concorriam a ele perderam e não queriam se conformar com o resultado. Principalmente o José Geraldo Vieira; ele estava com 70 anos e concorrera com um romance sobre Brasília. E, então, não tinha dúvida: o prêmio seria dele. Tão convicto disso estava, que, segundo me contaram quando fui a Brasília receber o prêmio, ele era visto treinando o discurso de agradecimento pelos corredores do Hotel Nacional, onde estavam hospedados os escritores que participavam da Semana Nacional do Escritor, Semana cujo término consistia exatamente na divulgação dos resultados do concurso. Quando, na última sessão, foram anunciados os ganhadores (eu na ficção e o Walmir Ayala na poesia), o José Geraldo se levantou e disse as palavras que os que acompanham a minha trajetória já sabem de cor e salteado: "Eu queria saber se esse concurso é destinado a aposentar autores de obra feita e premiar meninos saídos da creche." O José Condé também ficou fulo da vida, acusou a comissão julgadora de fazer "molecagem" e se retirou da sala. Enquanto na capital federal o pau quebrava, na capital mineira o menino saído da creche preparava-se para lançar o livro, o que aconteceu na noite de 20 de abril, numa pequena livraria de amigos, a Livraria do Estudante, numa galeria do centro. A poucos minutos de começar o lançamento, a livraria já cheia de gente, chega o Fábio Lucas, que eu conhecia e com quem já tinha alguma amizade, e me diz: "Você ganhou o prêmio." "Prêmio?", eu perguntei; “que prêmio?” "O prêmio de Brasília", ele me disse, contando-me, a seguir, que tinha chegado de lá naquela tarde, onde estivera participando da Semana. Logo depois, a pessoa que ia fazer minha saudação, meu amigo e que tinha sido meu professor de Estética no Curso de Filosofia, Moacyr Laterza, disse que, em vez de fazer a saudação, que tinha preparado, ia ler um telex que chegara à tarde de Brasília para o Estado de Minas. Ele leu. O resto, como dizem os colunistas, o resto é história...

      — A sua estreia com o Tremor de terra, em 1967, é comparável a duas outras grandes estreias: a de Dalton Trevisan, em 1959, com Novelas nada exemplares, e a de Rubem Fonseca, em 1968, com Os prisioneiros. Elas foram, talvez, as melhores estreias da ficção brasileira no século 20, e todas as três de contistas. O senhor sabia que os seus contos tinham força? O senhor sabia que havia feito um grande trabalho?
         — Por mais presunçoso que seja dizer isso, eu sabia, sim. Sabia que os meus contos tinham força e que eu tinha feito um grande trabalho. Havia dez anos que eu vinha escrevendo sem parar. Já tinha escrito contos que davam para fazer outros tantos volumes e que foram, em sua maior parte, parar, rasgados em pedacinhos e às vezes entre lágrimas de raiva, frustração e desânimo, no cesto de lixo. Foi muito esforço, muita obstinação, muita determinação, numa luta diária, de dia e de noite, em todos os momentos e em todos os lugares por onde eu andava. Além disso, eu lera muito, lera tudo o que mais importava ler na literatura brasileira e na estrangeira, e sabia perfeitamente o que era boa literatura e o que não era. E então eu sabia, sim, sabia que os meus contos eram bons, e, ao publicar o Tremor de terra, que, dissessem o que dissessem, ali estava um livro de valor, um livro importante, um livro de alta qualidade literária.

        — No Tremor de terra o senhor é Luiz Vilela. Não há influência de ninguém. Apenas um bom texto, um excelente texto. Foi este o seu plano? Apresentar algo diferente, sem estar à sombra de ninguém? Parece que o texto foi feito independente de tudo, apenas feito, como a vida...
         — Veja este comentário: "Realmente, é impossível levantar, numa história sua, vestígios de influência, já não dizemos dos grandes contistas do passado e do estrangeiro, mas sequer do Brasil e da atualidade. Não se surpreende nele um traço de Guimarães Rosa ou Clarice Lispector, Dalton Trevisan ou Lygia Fagundes Telles, José J. Veiga ou Rubem Fonseca. Toda a sua produção guarda a marca inconfundível: a do próprio Luiz Vilela." O comentário está na 4.ª capa da 1.ª edição de No bar, meu segundo livro, e, embora não esteja assinado, foi escrito por Macedo Miranda, que na ocasião trabalhava na editora, a Bloch, e me contou isso pessoalmente. Ler esse comentário me causou grande alegria, como também me causa, agora, o que você está dizendo. Isso porque vocês ambos souberam enxergar o que os meus dois livros têm de pessoal, de próprio, de único. Mas, por outro lado, sou obrigado a dizer que eles têm, sim, influência de outros autores, influências que, acrescente-se, eu declarei em entrevistas minhas aos jornais da época. Curiosamente, algumas delas são exatamente as que figuram na relação de Macedo: o Dalton, o Veiga, o Rubem... E houve, claro, os estrangeiros, uma porção deles: Hemingway, Tchekov, Faulkner, Camus, Kafka, Joyce e tantos e tantos outros... Para terminar: primeiro, não existe autor que não tenha sido influenciado, ainda que minimamente, por outro; segundo, a influência não diminui um autor, antes, pelo contrário, ela o engrandece. Agora, há, sim, uma diferença entre ser influenciado e estar à sombra. Quanto a isso, não há dúvida de que eu, de fato, não estava, como nunca estive, à sombra de ninguém.

         — O senhor foi também premiado, nessa mesma época, no I Concurso Nacional de Contos, do Paraná, e no II Concurso, e mais tarde ganhou o Prêmio Jabuti de melhor livro de contos com O fim de tudo. Essas premiações abriram mais portas para o senhor?
        — Abriram, claro. Os prêmios têm seu peso. Mas, por outro lado, é preciso olhá-los com um certo relativismo; há autores de grande valor que jamais ganharam um prêmio, e outros, de qualidade duvidosa, que ganharam às vezes até muitos. Eu próprio posso dizer que até uma certa fase de minha carreira, quando eu ainda participava de concursos literários, disputei com livros que, hoje, aí estão, com várias edições e toda uma fortuna crítica, e perdi para autores e livros que já foram engolidos pelo esquecimento. De qualquer forma, eu sempre recomendo aos autores inéditos, que me procuram com os seus originais, que entrem nos concursos literários. Eles são uma das melhores portas, senão a melhor, de ingresso no mundo das letras. Em Minas, foi assim que eu apareci, e foi assim também que apareceram, ganhando outros prêmios nacionais, o Oswaldo França Júnior e o Roberto Drummond, dois escritores que a literatura perdeu muito cedo e dois amigos, dois grandes amigos, que eu perdi.

     — O senhor acompanha a literatura que se faz hoje? Qual é a sua avaliação do conto brasileiro atual?
        — Eu acompanho, sim, a literatura que se faz hoje. Acompanho-a por meio da imprensa, dos contatos que mantenho com escritores, jornalistas e editores, e dos muitos livros que recebo pelo correio. No caso específico do conto brasileiro, minha avaliação é a de que ele está numa fase ótima, uma fase que faz lembrar a de 70, quando o conto dominou no cenário da literatura brasileira e o contista mineiro foi elevado à condição de mito, às vezes com admiração, às vezes com raiva, às vezes com ironia, pela sua onipresença nas publicações e pelos muitos prêmios que ganhara. Eu até já pensei, num dos meus momentos de divagação, que se o governo tivesse um pouco mais de interesse pela cultura, ele podia transformar o conto brasileiro em artigo de exportação. Por que não? Qual outro país no mundo, eu pergunto, que tem em quantidade e qualidade um conto como o nosso? Talvez só mesmo os Estados Unidos e a Rússia. E por falar nisso, em conto e na literatura russa, aqui vai um alô aos editores brasileiros: quando é que vocês vão publicar um dos maiores contistas da literatura mundial contemporânea, chamado Yuri Kasakov? É um absurdo que esse autor seja até hoje, salvo um grande engano de minha parte, um completo desconhecido em nosso país. Chego mesmo a pensar que eu sou o único brasileiro que o conhece e que já o leu. Pois, sempre que falo com alguém sobre ele, a pessoa não só não o conhece, como nele nunca ouviu falar. Kasakov é um contista maravilhoso, que lembra muito o conterrâneo Tchekov, mas com um estilo mais solto, embora não menos belo. De sua vida pouco sei. Sei que ele já morreu, não faz muitos anos. Eu o li a primeira vez ainda estudante em Belo Horizonte, em um número da revista Esquire. Pouco depois, li uma resenha sobre um livro dele, numa revista literária francesa, na biblioteca da minha faculdade. E, finalmente, quando eu estava em Barcelona, em agosto de 68, uma tarde em que eu ia passando em frente a uma livraria, vi na vitrine um livro dele. Mais que depressa entrei, comprei o livro, voltei para o meu hotel e o li com sofreguidão. Beleza pura. Então, senhores editores, quem vai ser o primeiro a dar ao leitor brasileiro esse presente?

       — Qual é a sua opinião sobre a crítica? O senhor acha que ela tem importância? Como o senhor encara as críticas à sua obra?
          — A crítica é fundamental para a literatura. Quanto mais crítica, melhor. De minha parte, como autor, eu me interesso por ler tudo o que escrevem sobre os meus livros, mesmo que seja apenas uma linha. Quando eu acho que o crítico compreendeu o que escrevi, eu fico feliz. Quando eu acho que ele não compreendeu, eu fico chateado. É normal. O escritor é como todo o mundo.  Todo o mundo gosta de ser compreendido, ninguém gosta de não ser compreendido. Os elogios também são importantes, principalmente quando partem de pessoas que você admira. Lá pelos meus 30 anos, eu recebi um cartão do Carlos Drummond de Andrade chamando um conto meu, "A volta do campeão", de “uma obra-prima”. Poucos anos depois, me chegava um telegrama da Clarice Lispector chamando o Tremor, em nova edição, de "livro ótimo". Qual o autor de minha geração que não gostaria de receber esses elogios? Eles me fizeram, e até hoje fazem, muito bem. Mas, voltando à crítica, e a propósito de A cabeça, eu gostaria de destacar alguns comentários que foram feitos na imprensa neste menos de mês que passou depois que o livro saiu, e o faço como uma colaboração ao leitor, o que já leu o livro e o que ainda vai ler, e como um cumprimento à inteligência e à sensibilidade desses jovens críticos, que foram os primeiros a sair a campo e a arriscar, no escuro da novidade, a sua opinião. No Estado de Minas, João Paulo chamou o livro de "um soco no estômago do formalismo e um tapa na inconseqüência moral da classe média". No Tempo, também de Belo Horizonte, logo depois, Francisco de Morais Mendes observou que "as narrativas, aparentemente despretensiosas, são sofisticadas armadilhas, armadas pela ironia ou pelo humor, que prendem o leitor e o levam a refletir sobre a vida ou sobre o que fazemos dela." E, por fim, na Gazeta, de Curitiba, Miguel Sanches Neto, que me recebe na capa desta edição do Rascunho, comentou, de forma lapidar, que “Luiz Vilela não quer dar lição humana, e nem literária". Outras críticas certamente virão; espero que muitas e com o nível das que aqui foram citadas.

      — O senhor já foi traduzido nos Estados Unidos, Alemanha, França, Inglaterra, Itália, Suécia, Polônia, República Tcheca, Argentina, Paraguai, Chile, Venezuela, Cuba e México. Já teve um conto, "Tarde da noite", adaptado pela TV Globo, na série Brava Gente, um curta metragem baseado no seu conto "Françoise", com a Débora Falabella, curta que já ganhou vários prêmios, inclusive no exterior. Dissertações de mestrado e teses de doutorado já foram feitas e estão sendo feitas em vários Estados do Brasil sobre a sua obra. Como o senhor encara tudo isso? E qual é o seu maior sonho atualmente como escritor?
       — Eu encaro tudo isso como coisas normais que, com um pouco de sorte, acontecem a quem, como eu, se dedicou a vida inteira a escrever, a quem, neste quase meio século já decorrido desde aquele dia em que o menino de 13 anos se debruçou à mesa para escrever seu primeiro conto não passou, pode dizer, um só dia sem pensar em literatura e que, recentemente, procurando resumir seu passado, seu presente e seu futuro numa só frase, disse: "minha vida é escrever; escrever é minha vida." Maior sonho atualmente como escritor? Sim, eu tenho. Meu maior sonho atualmente como escritor é ver reunida, sob o teto de uma mesma editora, toda a minha obra. Apenas isso. Nada mais que isso. Esse é o meu maior sonho. Só espero não morrer antes de vê-lo realizado.

     — E projetos? O senhor está planejando escrever algum novo livro? Ou já o está escrevendo?
           — Nem uma coisa nem outra. É melhor: eu já estou com um novo livro pronto. Só faltam os retoques finais. É uma novela, a minha terceira, e se chama Perdição. O título é extraído de um capítulo da segunda epístola de São Pedro, chamado "Os falsos mestres": "E também houve entre o povo falsos profetas, como entre vós haverá, também, falsos doutores, que introduzirão encobertamente heresias de perdição, e negarão o Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina perdição. E muitos seguirão as suas dissoluções, pelos quais será blasfemado o caminho da verdade. E, por avareza, farão de vós negócio, com palavras fingidas; sobre os quais já de largo tempo não será tardia a sentença, e a sua perdição não dormita." Mas pode também, quem sabe, ter sido o título extraído de uma passagem em que o personagem, depois de dizer que tivera tudo, dinheiro, carro, mulheres, confessa que não tinha mais nada, que perdera tudo. Ou, por que não?, de uma frase do narrador falando dos brincos da mulher que o procura com a aparente intenção de seduzi-lo: "ah, brincos de argolas grandes, minha perdição!, será que ela sabia disso? será que ela sabia?" Ou, finalmente, ele não passaria de uma brincadeira do autor com as palavras, numa quase perfeita paronomásia? São Pedro e Perdição. Qual? Qual deles? O leitor que leia o livro e tire a sua conclusão. Pois mais não diz nem dirá o autor.

             — Terminando, se o senhor tiver alguma coisa a acrescentar...
        — Sim, eu tenho. Hoje é dia 25 de julho, Dia do Escritor, e eu quero saudar os meus companheiros. Daqui, da solidão de meu quarto, neste canto do Brasil, eu saúdo todos os escritores do mundo, homens e mulheres, jovens e velhos, brancos, pretos, amarelos, conhecidos e desconhecidos, publicados e inéditos. Que tenhamos todos, eu desejo, a coragem necessária para seguir em frente, que nossa fé nunca esmoreça nem desapareça, e que, por fim, sejamos capazes de realizar os nossos sonhos, honrando a memória dos que nos precederam e mantendo para sempre acesa a chama da literatura.

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