segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

PERDIÇÃO: Resenha - 8


PERDIÇÃO: SÍNTESE DE UMA COSMOVISÃO EM EVOLUÇÃO

João Assis de Oliveira

Existe vasta riqueza crítica sobre a obra de Luiz Vilela — todos bem o sabem; cada uma diz um pouquinho da própria verdade pessoal (sintomática) ao destacar esta ou aquela, digamos assim, tendência evolutiva no incrível percurso de Luiz Vilela.

Assim, pode-se tomar Perdição como um adequadíssimo mostruário (e até monstruário — veja-se o Papudo [monstro do lago que é cenário do romance])  do que se disse acima. Existe, no romance, um pouco do muito que havia já no início da mímese da vida a que se propôs Vilela em sua arte.

(AVISO aos navegantes:  não se pretende aqui fazer PSICOLOGISMO, sempre vão porque barato; muito menos PSICANALISAR uma obra — seria isso possível?!).

O que importa aqui é destacar, em Perdição, o alcance de um ponto  (no sentido mesmo do que se faz com um doce) a partir do qual o narrador (com seu tanto de autor) parece dizer algo assim: está aqui o que pude  alcançar do mistério que é a vida; eis aí meu deslumbramento e também meu descontentamento com ela. Fala-se muito de Deus no que escrevi; mas o diabo está bem mais presente aí — ele está nas entrelinhas, como o de João Guimarães Rosa esteve pelas veredas, no meio dos redemoinhos do sertão.

A propósito, ser tão solitário — por exigência mesmo da arte em que se meteu a aprontar —, o escritor paga o seu alto preço (pois não quis a loucura e nem o suicídio). E se escolheu viver, o Simbólico cobra dele a honestidade e a franqueza de sua mímese, pois o autor corre perigosamente por entre esses dois outros riosinhos, todos os três indo acabar na lagoa — no Estige — em que se meteu Leonardo, e onde o narrador só quis dar uma olhada, felizmente — possivelmente, este último deve ter aprendido com Nietzsche que lidar com monstros é estar sempre à beira do precipício (que seja de uma lagoa), em que não se deve olhá-lo muito demoradamente, sob pena de também em um monstro se transformar...

Pois bem, todo este preâmbulo é apenas para dizer da beleza de um percurso honesto, de uma cosmovisão autêntica, de um testemunho quase evangélico, de um vivenciar o suprerreferido mistério. Veja-se se não é verdade: da compaixão quase competentemente animal dos belíssimos contos “A chuva nos telhados antigos” e “Piabinha”, por exemplo, passa-se — por via, certamente, de um longo, prazeroso e não menos doloroso percurso — passa-se à tão humana, mordaz e bem escrita ironia presente aos borbotões via fala de Ramon no Perdição.

Mas não nos iludamos, nós leitores, pois que atos falhos sempre existirão, desde que se trate de humanos. Ramon parece tão seguro de si, no relato ora em análise — que exaustivamente ironiza tudo, com humor cáustico, no lugar e na hora certa — e desvelando, por isso, sua tão peculiar cosmovisão! Porém, quando comparece o Inconsciente, ele e Leo (particularmente este) levam cada um sua bordoada; note-se isto nas conversas aparentemente triviais à beira da lagoa em que se metem a pescar (ops! É "metem" mesmo, pois há um erotismo sutil e inconsciente pairando toda a cena... Eh, esse negócio de duplas fiéis de pescadores é muito suspeito... Nada contra; apenas constata-se o fato aqui).

Perdição, então, está repleto de uma mestria que aqui se propõe chamar  de SÍNTESE. Mas, felizmente, ele foi escrito (quero acreditar nisso) para se afastar, por mais um tempinho ainda, daquilo que é a verdadeira síntese: a morte — essa "indesejada das gentes" que percorre incólume a obra em questão. Vilela pega seu Ramon (ou é pego por ele) e o faz revelar os rodeios, tão peculiares e cheios de cuidado — que o distanciam do Estige por mais tempo. Já Leonardo acaba por voltar a fazer parte da sopa original e milenar (ou da lagoa) de onde surgiu a vida — ah, a misteriosa vida.

Que venha mais Vilela, a enganar pelo máximo de tempo possível a inexorável morte — de nossa parte, resta agradecer-lhe pelo relato de mais essa bela rasteira nessa danada de foice tão afiada e fatal.

É mesmo verdade o que o próprio autor de Perdição certa feita disse: "As grandes alegrias e as grandes tristezas são sempre solitárias". Agora, com o Perdição, foi a vez das "grandes alegrias" — felizmente!

Perdição, não Redenção, isso sim!

João Assis de Oliveira é médico; foi professorde 
língua portuguesa, redação e literatura; éalma 
inquieta, apaixonada por literatura; na 
Ituiutaba natal, foi jovem livreiro

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