terça-feira, 20 de dezembro de 2016

O Filho de Machado de Assis - 12


Ao leitor, as batatas. À academia, nada.


                                                                                         Ronaldo Vinagre Franjotti


O Filho de Machado de Assis
Luiz Vilela – Ed. Record
2016, 128 p.

          Em sua mais recente novela, o mineiro Luiz Vilela mantém as marcas que o fizeram famoso mundo afora: diálogos incômodos e língua afiada. Seu principal alvo dessa vez é a academia literária e seu ranço idólatra. Nosso país, aliás, sempre sofreu por conta do culto à personalidade, a faceta moderna do famoso Sebastianismo português. Se o papel do escritor é iluminar o caminho escuro em épocas de adversidade, como afirma Érico Veríssimo em suas memórias, dir-se-ia que Vilela continua desempenhando de modo primoroso seu compromisso como ficcionista.
         A narrativa é montada, quase que exclusivamente, a partir de diálogos, outra marca da prosa do escritor e muito comum em outras novelas suas, como Bóris  e Dóris (2006). Aliás, em várias obras os diálogos de Vilela tematizam um duplo paradoxal. Em Bóris e Dóris, assim como no romance Graça (1989), o duplo é um casal incompatível. Nessa nova obra, o paradoxo é apresentado no choque de gerações: o velho e o novo, o professor e o aluno, o sábio e o tolo. Essa dualidade reflete, no fundo, a grande dicotomia da academia: Machado e seu leitor moderno.
         Os protagonistas da novela são o professor Simão – uma clara alusão à obra de Machado, visto que o nome da personagem e seu aspecto mentalmente doentio remetem diretamente ao protagonista homônimo da novela O Alienista (1881) – e Telêmaco, cujo nome remete ao filho mitológico de Ulisses que, na ausência do pai após a guerra de tróia, cresce carente de uma figura paterna. A relação dos protagonistas poderia ser assim resumida: um velho meio louco e um garoto ansioso por um pai.
         Não julgue o leitor que essa definição é demasiado agressiva ou grosseira.
        Outra marca da escrita de Vilela também muito presente nesse texto é o ataque frontal ao politicamente correto e às idealizações de qualquer espécie. Os diálogos não procuram mostrar apenas um par coeso numa perfeita relação paternal. Verdade que se percebe em Simão um ancião orgulhoso de seu prodígio que, por sua vez, sabe reconhecer o papel de educador e condutor do outro. Mas as falas dos dois expõem claramente também que essa relação é de desconfiança e subserviência. Simão é um velho professor amargo pela idade – “velho só serve para fazer chacota” (p. 18) – e pelas mazelas da vida acadêmica, repleta de inveja, mesquinharia e ingratidão. Mac, o pupilo narrador, é um admirador que, apesar do carinho quase filial – “Eu sou muito grato ao senhor por tudo que o senhor fez por mim” (p. 13) – se ressente de sua subserviência para com o antigo mestre – “Francamente: tinha hora que eu tinha vontade de mandar o professor àquilo...” (p. 10).
         Além de toda a problemática personalidade dos protagonistas, a novela traz como cereja do bolo uma revelação explosiva acerca do ídolo maior da ABL, uma grande descoberta que revolucionaria os centros acadêmicos e grupos de pesquisa: o bruxo do Cosme Velho tivera um filho às escondidas. O mote do filho bastardo serve a um duplo objetivo: estabelece a denúncia ao culto da personalidade machadiana – que o professor chama de “machadolatria” – e dá o tom niilista que perpassa os diálogos.
         Machado de Assis foi um dos fundadores da ABL e é, até hoje, um dos membros mais festejados. Preto e pobre, cresceu em graça e sabedoria para se tornar um dos maiores críticos, e retratadores, da elite carioca do fim do século XIX. Sua vasta obra é repleta de personagens icônicos que são retomados nessa “homenagem” de Vilela. Após promover uma busca por esses Easter Eggs, encontramos:
·             Brás Cubas – o defunto pessimista  de Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) é o primeiro a ser lembrado, assim como sua negativa mor: “Não tive filhos, não transmiti a  nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.
·        Rubião – a figura do enfermeiro de Quincas Borba (1891) é apresentada aqui na persona da empregada Maria, a preciosa Rubiácea, que serve a Simão. 
·     Esaú e Jacó (1904) – nesse romance, Machado apresenta dois irmãos gêmeos, Pedro e Paulo, que digladiam. Na novela, eles são representados por Simão e seu irmão Judete. 
·        O Alinenista – Como já mencionado, o protagonista Simão retoma essa novela machadiana, não apenas nas peculiaridades da personalidade de seu homônimo, mas também na ânsia de curar nossa gente. Se o herói de Machado quer a cura da loucura, o de Vilela quer a de nossa cegueira moral.
A desconstrução de mitos não para no escritor homenageado, ela prossegue numa ânsia niilista de exterminar qualquer valor, seja histórico (como Tiradentes) ou social (como o feminismo e o politicamente correto). Há também, sempre através dos diálogos, o aniquilamento de estereótipos como o do professor dedicado – que se revela um educador desiludido – e o do aluno admirador – que é, na verdade, um vassalo ressentido. 
Vale ressaltar que, acima de tudo, é o humor o veículo para todas essas críticas e reflexões, o que dá ao texto, mais uma vez, um caráter dúbio: cômico e reflexivo, leve mas profundo. 
Essa mistura continua fazendo da leitura das obras desse mineiro um deleite, ainda que também o faça um tormento. Seus textos unem o paradoxo da oratória assinalado pelo Pe. Antônio Vieira no Sermão da Sexagéxima, promovem tanto o prazer de ouvir um bom discurso quanto a reflexão necessária que deve advir de tal ato. Vilela quer nos encantar com sua narrativa dialógica sim, mas também quer que nos perguntemos sobre nossos valores e reflitamos sobre a ditadura do politicamente correto e sobre a idolatria dos grandes vultos. E esse questionamento deve durar até que nada reste. Por isso, aliás, o encerramento do livro – o último diálogo do narrador com sua namorada – é tão  sublime, epifânico até, eu diria:
“Bem”, eu disse, “o Machado teve um filho.”     
“Quem?”      
“O Machado de Assis.”      
“E daí?”, ela perguntou.      
“Daí”, eu respondi. “Daí nada.”  (p. 105).

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