A LITERATURA ENQUANTO TESTE DE DNA
Ocorre que agora um fato ainda mais escandaloso, relacionado ao passado do bruxo do Cosme Velho, acaba de vir à luz. A descoberta também foi feita por um professor, e, da mesma forma, ao investigar papéis antigos numa pesquisa de biblioteca. De repente, estava ali, numa passagem. A notícia das notícias: Machado de Assis tivera um filho!
“Um filho? Machado?”“Sim, senhor: Machado de Assis.”“Mesmo, professor?”“Mesmo; mesmíssimo.”“Não é aquela história dele com a mulher de José de Alencar…”“Não, não; aquilo é fofoca, isso aqui é real, é fato.”“Caraca!…”“É espantoso, não é?”“Espantosíssimo!”
A revelação é o mote da divertida novela O filho de Machado de Assis, do mineiro Luiz Vilela. O premiado escritor dá voz ao professor Simão Serapião, um octogenário amalucado, ressabiado e um tanto neurastênico, que, ao tomar conhecimento de que “o nosso Joaquim Maria teve um Joaquinzinho”, telefona para o aluno Telêmaco (procure, leitor, referência na mitologia grega), o Mac, no momento em que este se prepara para ir à praia com a namorada. A exaltação do professor, no entanto, retarda o programa (a muito contragosto de Luana, a namorada), arrastando-o até o apartamento do velho, onde se desenrola a narrativa, constituída, basicamente, por diálogos.
“O mundo acadêmico: gente que escreveu livros inteiros explicando a obra do Bruxo pela ausência de filhos… E agora, com que cara eles vão ficar?”
A contraprova é a frase final de Memórias póstumas de Brás Cuba: “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”, entendida, durante um século, como uma confissão do autor para não ter deixado herdeiro. A mentira leva, então, a uma longa conversa em que se discute a vida de Machado, seus relacionamentos, as puladas de cerca e, até mesmo, sua sexualidade. As hipóteses vão se acumulando sem empreender resposta, muito porque o professor, confiando ao mesmo tempo que desconfiando do aluno, não revela a origem da prova, em qual “papelada antiga” encontra-se a certeza da paternidade.
“Me desculpe, meu caro: apesar de toda a minha confiança em você, confiança que ainda há pouco acabei de reiterar, eu não vou dar os detalhes do que eu quero lhe contar. Para lembrar outra expressão popular, eu vou contar o milagre; o santo fica para depois…”
Ainda que dito e repetido, nunca é demais enaltecer a fluência dos diálogos de Vilela. O escritor reúne todas as qualidades que o colóquio entre personagens deve apresentar: dinâmica, leveza, expressividade e, acima de tudo, convencimento (n. do resenhista: morro de inveja do conto “Suzy”). Seu texto parece ser resultado de algumas horas, diante de tamanha simplicidade e magnetismo, mas a maestria está justamente na perícia em fazer o simples e, do simples, gerar o magnético.
Desse modo (vide o conto “A cabeça”), a potência não está no começo ou no fim, mas na extensão que completa esses dois pontos (n. do resenhista 2: os diálogos finais são de um esvaziamento brilhante). Outra marca da ficção de Vilela são os subtextos incorporados às suas histórias. Aqui, o escritor mineiro trata das contrariedades contemporâneas. O interesse sórdido pela vida alheia acomodado à patrulha do politicamente correto; a sociedade que se refestela em polêmicas, sem se ater à veracidade do fato; as intermináveis discussões rasas que não levam a lugar algum. Tudo temperado com uma ironia refinada e um humor zombeteiro.
“Não se iluda, meu caro, não se iluda: cultura não confere caráter a ninguém, da mesma forma que batina e hábito a ninguém confere santidade.”
“A cultura às vezes até refina e amplia o que há de pior numa pessoa.”
Aliás, quem se importa qual foi o primeiro livro escrito por Machado?
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Livro: O filho de Machado de Assis
Editora: Record
Avaliação: Muito Bom
Editora: Record
Avaliação: Muito Bom
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