O escritor, engenheiro e professor Whisner
Fraga resenha seu conto predileto de Luiz Vilela, o “Tarde da noite”, do livro
homônimo de 1970. Esse conto, como diversos outros de Vilela, tem, como
principal estratégia de construção narrativa, o diálogo, e nele mais uma vez
fica evidenciado que o escritor é, conforme afirma Whisner Fraga, “o grande
mestre neste quesito, na literatura brasileira e até em termos mundiais”. A
resenha foi escrita a partir de uma proposta de Sérgio Tavares e foi publicada
originalmente na revista digital Homoliteratura (veja aqui). Reproduzimos abaixo a publicação.
Whisner Fraga resenha seu conto predileto: “Tarde da noite”, de Luiz Vilela
O conto se inicia com um casal em uma cama e com um telefone
que toca em um criado no quarto escuro. O homem atende e aos poucos é levado
para um mundo estranho e ao mesmo tempo instigante. Luiz Vilela sempre trabalha
com paradoxos e diálogos. Ficamos sabendo que, do outro lado da linha, uma moça
afirma que vai se matar e que ela deseja que alguém a convença a não fazer
isso. Evidentemente, ele pensa que é tudo brincadeira, mas a dúvida o leva a
conversar seriamente. Há tempos não sentia o coração pulsar tão rapidamente,
aquele frio na barriga, aquela emoção da juventude e, de repente, é ele que não
deseja que aquela conversa não acabe mais.
Então, o homem repensa sua própria vida de decisões
pretensamente equivocadas enquanto tenta convencer a moça de que tem um futuro
à frente e que não é sensato colocar fim à vida dessa maneira. O problema é que
vai ficando claro que acredita cada vez menos nisso. Assim, a conversa segue
pela madrugada, enquanto a esposa, cansada e rabugenta, não se interessa por
dramas alheios e insiste para o marido desligar, que não se acorda alguém assim
de madrugada. Vamos percebendo que o homem se envolve com a moça e pensa até,
quem sabe, que está tendo um caso.
Não há grandes argumentos, as falas são simples,
corriqueiras e o papo prossegue até que, em determinado momento, a garota
desliga e não se pode saber mais nada.
Vilela usa, desde seu primeiro livro, o recurso do diálogo.
Para mim, o diálogo é uma forma complicada de representar a realidade e a menos
verossímil, mas tenho no escritor mineiro um expert nessa
arte. Opta pela norma culta para reproduzir uma oralidade que em nada se parece
com a língua escrita. Funciona, mas é bom que o leitor tenha em mente que, por
mais que se esforce para se aproximar da fala, é apenas uma tentativa
frustrada. É uma fantasia dentro de um mundo de ficção. As conversas são
lineares, um interlocutor não interrompe o outro, como se fossem um algoritmo,
que obedece a uma ordem preestabelecida. Os diálogos na vida real nunca são
assim. Mesmo com todas essas ressalvas, não há dúvidas de que o grande mestre
neste quesito, na literatura brasileira e até em termos mundiais, é Luiz
Vilela.
Trecho do conto Tarde da
noite, de Luiz Vilela
“Olha, senhorita, sabe que estou quase
desligando o telefone?
Pode desligar. A responsabilidade é sua.
Responsabilidade porque?”, falou irritado.
Porque minha vida está em suas mãos.
Ah é né?
Sério. Não estou brincando. O senhor
não percebeu ainda? Que minha vida está em suas mãos?”
Trecho do conto x, de
Whisner Fraga
“[...]ao ríspido guincho do fusca, que empregávamos para as
aulas de volante, quando os trâmites da embreagem desafiavam a coordenação dos
seus pés encolhidos nas havaianas, afif, quando um galho amputado se interpunha
na promiscuidade entre o pneu e o asfalto e os pelos de duas meninas se
ouriçavam com o zurro descautelado do ramo partido e estacionávamos para
analisar aqueles seios ressabiados nos coldres do poliéster e da lycra, as
convocávamos para um sorvete e também para um cinema, onde aproveitaríamos uma
que outra cena umbrosa na insignificância da fita para atacar o crepe daquelas
coxas juvenis e quem sabe conquistar a mercê de um beijo. entretanto, afif, o
mocinho da película acalcava a inquietação do negrume de um quarto sem janelas
ou lâmpadas ou mesmo lampiões ou velas e nesta hora eu interpelava a arrelia
dos flashes na mansidão da tela, os olhos escapando da agilidade da palma, que
investigava a angustiante morfologia do joelho, daquele pontifício joelho
representando a aflitiva transição para o âmbito das responsabilidades.
contudo, afif, a ansiedade bordejava pelos subterrâneos da garganta, preparando
o sobressalto de um grito e a glutinosa serenidade de um toque a ponderar os
estratagemas do zíper de minha bermuda, era a sua audácia, garota, rompendo os
entraves até ao termo do que julgava sua obrigação, quando você recolheu o
fantoche da glande embrulhado com a casca daquela novidade ondulante e eu já
comprovava a vantagem dos filmes em preto e branco para o encobrimento de
peripécias. a rebeldia tentacular bamboleando a carenagem do sexo até à
catastrófica descarga escalando as suas mãos, menina, e você a emborcar os
dedos na língua, extirpando as evidências daquele incidente, para em seguida me
oferecer o lenço, para depois hastear a saia e afastar com o desatino do
polegar as rendas da lingerie e com o indicador encorajar uma morosa
confidência com o prazer.”
Whisner Fraga é professor, engenheiro e
escritor. Autor dos livros Coreografia de danados, A cidade
devolvida, As espirais de outubro, Abismo poente, O
livro da carne e Sol entre noites. Site: www.whisnerfraga.com.br.
Autor de 'Queda da Própria Altura' (Confraria do Vento), finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e 'Cavala' (Record), vencedor do Prêmio Sesc Nacional de Literatura - Categoria Contos. Tem textos publicados em jornais, revistas e sites literários nacionais e internacionais.
Estudos sobre o livro Tarde da noite, de
Luiz Vilela, estão disponíveis em Rauer (2006), Rauer e Kelcilene (2010), e Rauer e Waleska (2013); contos do livro já foram adaptados para o teatro, para a tevê ("Tarde da noite”, Globo) e para o cinema (“Françoise”).
Há também, no conto, os temas da incomunicabilidade e
da solidão, temas que foram estudados em outras narrativas de Vilela, como na
tese de Wania Majadas, nas dissertações de Ronaldo
Franjotti e de Lucas Gonçalves, em TCC's e em artigos, conforme se pode verificar nos itens
listados na aba Fortuna Crítica do Blog.
Abaixo, reprodução do trecho do conto citado por Whisner tal como consta na 3ª edição,
de 1983, da Editora Ática:
"Olha, senhorita, sabe que eu estou quase desligando o telefone?"
"Pode desligar. A responsabilidade é sua."
"Responsabilidade por quê?", falou irritado.
"Porque minha vida está em suas mãos."
"Ah, é, né?"
"Sério. Não estou brincando. O senhor não percebeu isso ainda? Que minha vida está em suas mãos?"