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LUIZ VILELA E DALTON TREVISAN
Dalton Trevisan, que recebeu
recentemente o Prêmio Camões, o mais prestigioso da atualidade em língua
portuguesa, fez no dia 14 de junho 87 anos. Associando-se às homenagens
prestadas ao escritor, este blog transcreve a famosa entrevista que com ele fez
Luiz Vilela e que foi publicada no Jornal da Tarde de 6 de julho de
1968.
Transcrevemos também, aqui, a entrevista de Vilela ao
tablóide Cândido deste mês, contando as circunstâncias em que aquela
entrevista se deu e, a partir dela, a sua relação pessoal com o escritor
paranaense. Na oportunidade, reproduzimos uma das cartas citadas na entrevista.
Reproduzimos, ainda, algumas fotos de Edison Jansen,
do jornal O Estado do Paraná, registrando o encontro inicial dos dois
escritores em Curitiba, em 2 de julho de 1968.
Por fim,
reproduzimos uma declaração de Dalton sobre alguns contistas, entre os quais
Luiz Vilela, constante de uma entrevista gravada sem o conhecimento do escritor
e publicada na revista Status, em 1979.
A HISTÓRIA DO CONTADOR DE HISTÓRIAS
Luiz Vilela
O
professor de Português, no ginásio, tinha marcado uma redação para casa. Um dos
alunos escreveu sobre uma criança pobre passando fome. O professor disse que o
menino era "comunista e neurótico". Comunista ele já sabia o que era
(isso foi no tempo do Estado Novo); neurótico, ele foi em casa olhar no
dicionário. Agora, aos 43 anos, ele lembra: "Foi esse o meu primeiro
contato com os julgadores literários." Mas os críticos de hoje não pensam
como aquele professor: eles acham que Dalton Trevisan é o maior contista
brasileiro vivo, e há oito dias lhe deram o maior prêmio do maior concurso
nacional de contos.
Magro,
de cabelos claros e alguns já brancos, óculos de lentes grossas, vestido de
maneira simples e meio displicente, ele vai pelas ruas de Curitiba com alguns
amigos, falando de sua vida e de sua literatura. De vez em quando a conversa é
interrompida por um conhecido, que lhe dá os parabéns; mas isso acontece pouco:
para quase todas essas pessoas ele é apenas um cidadão comum, sem nada de
especial.
Numa
praça, sentados num banco de madeira, estão quatro bêbados, sujos e barbudos;
Dalton Trevisan aponta para eles e diz, referindo-se a um de seus contos:
"Aí o 'cemitério de elefantes'..."
Ele
continua a lembrar coisas de quando começou a escrever. O que aconteceu no
ginásio não o desanimou; pelo contrário. "Os elogios são inúteis; uma
crítica me estimula quando é negativa." Quando uma grande editora publicou
pela primeira vez seus contos, um crítico importante falou mal deles.
"Isso foi ótimo para mim", diz Dalton. Não é que concordasse com o
crítico: mais tarde, já reconhecido por quase toda a crítica como um dos
maiores escritores brasileiros contemporâneos, Dalton, ao publicar um novo
livro por outra grande editora, pensou em "pôr aquele artigo como orelha
do livro".
Mas a
fama custou a chegar, e foi preciso muita luta. Depois das redações no ginásio
— "eu fazia não só as que o professor marcava, mas também as que o livro
sugeria no fim da lição, porque eu gostava de escrever" — veio a Faculdade
de Direito, onde ele era bom aluno e bom atleta: ganhou várias medalhas nas
competições. Ao mesmo tempo, era repórter de polícia: "Foi a primeira vez
que eu vi um morto."
Apareceram
os seus primeiros livros, Sonata ao Luar
e Sete Anos de Pastor, que não
tiveram quase nenhuma repercussão entre os críticos e que ele hoje diz
arrepender-se de ter publicado.
Ele
criou também, com outros, a revista literária Joaquim, que ficou famosa e revelou nomes hoje importantes em
nossas artes.
Mais
tarde, já em 59, a
editora José Olympio publica Novelas Nada
Exemplares. Tiragem: 1.000 exemplares. O livro quase não vende. Os editores
fecham as portas a Dalton.
Ele
perde algumas ilusões, mas não perde a vontade de escrever. Tem a idéia de
fazer algo parecido com a literatura de cordel, do nordeste: são pequenas
brochuras, em papel de qualidade inferior, que ele distribui de graça a alguns
amigos. "Eram duzentos exemplares; eu me sentia realizado: em poucos dias
a edição se esgotava."
Alguns
críticos comentavam com entusiasmo os contos do estranho e misterioso escritor
que morava em Curitiba e que ninguém conhecia. A curiosidade dos leitores
aumentou. Começou a nascer um mito. Os editores se interessaram. O resto da
história é conhecido: outros livros (Morte
na Praça, Cemitério de Elefantes, O Vampiro de Curitiba), prêmios,
antologias, traduções para o estrangeiro. Mas, para muitos, o mito continua:
Nelsinho, o vampiro que desliza pela noite fria de Curitiba, à procura de mulheres,
não é outro senão o próprio Dalton Trevisan.
O
vampiro sorri e confessa: "Eu sou casado, muito bem casado." Ele tem
duas filhas e diz: "Gostaria de ver o nome delas na reportagem; se chamam
Rosana e Isabel." As outras pessoas da família: dois irmãos, que, como
ele, trabalham na cerâmica do pai. A mãe morreu no ano passado, e depois disso
ele ficou seis meses sem escrever.
Alguém pergunta se eles lêem
os seus contos; Dalton responde que sim, mas diz que às vezes preferiria que
não lessem. "Eles devem pensar: como que uma pessoa educada com carinho,
nos melhores sentimentos, virou esse monstro moral?"
É
meia-noite num bar, e o garçom acaba de pôr mais uma dose de uísque nos copos.
O rosto de Dalton, vermelho, tem um aspecto carregado e trágico: lembra alguns
retratos de Giovanni Papini no fim da vida, um Papini mais moço. "É isso o
que o escritor é: um monstro moral." Sua voz, que é interior, dá um ar
mais sombrio ainda à frase. "O escritor é uma pessoa que não merece
nenhuma confiança. Um amigo chega e me conta as maiores dores; eu escuto com
atenção, mas estou é recolhendo material para mais um conto. E eu sei disso na
hora. Surge então a má consciência. Sei que estou fazendo assim e não desejaria
fazer, mas não há outro jeito. O escritor é um ser maldito."
"Vejam",
continua Dalton, "meu conto 'Último dias' é sobre a morte de minha avó.
Era uma pessoa por quem eu tinha a maior afeição. No entanto isso não aparece
no conto, só aparecem coisas negativas. Não sei, talvez fosse inabilidade
literária minha."
Um breve silêncio para o
uísque. Dalton fica de cabeça baixa, olhando para a mesa, coberta com um forro
vermelho. O bar está na penumbra. "Mudar a vida", ele diz;
"quando comecei a escrever, eu pensava nisso: changer la vie, como disse Rimbaud. Mas isso evanesceu logo."
Rimbaud,
aos vinte e poucos anos, parou de escrever e foi ser mercador na África.
"Dalton, você já pensou em parar de escrever algum dia?", um amigo
pergunta. "Bom, eu às vezes passo meses inteiros sem escrever nada; mas
parar definitivamente, não. Tenho fases: há ocasiões em que escrevo três,
quatro contos em poucos dias. Mas, depois, passo muito tempo sem escrever uma
linha. Também reescrevo sempre os meus contos. Às vezes me dá medo de morrer:
então disparo a escrever."
"Escrever
é a única justificativa que encontro para estar vivo. Meus gestos cotidianos
são vazios. Mesmo o amor e o sexo; o sexo dura muito pouco tempo. As outras
coisas? Eu não tenho o dom de ganhar dinheiro; nem ambição de poder. Escrever é
uma atividade inútil, mas, para mim, ainda é a menos inútil de todas e a que me
faz continuar vivo. E qual a compensação de escrever? Uma frase boa que a gente
cria, uma imagem, coisas assim, que agradam num momento e no dia seguinte já
nos deixam insatisfeitos. O escritor troca a sua vida por nada."
A noite de Curitiba está fria mas agradável.
Alguém sugere um cafezinho. Dalton sorri: "Eu não. Não quero tirar o
gostinho bom do uísque."
Na
redação de um jornal, um repórter lhe dá algumas fotos suas. Ele olha uma por
uma com atenção: "Puxa, não é que estou bacana aqui? Estou começando a
gostar dessa coisa toda..." Mesmo quando está mais sério, Dalton não
parece ter 43 anos. Ele não tem nada de um quarentão; lembra um jovem professor
universitário, calado, atento, extremamente simpático.
Diz
que é um tímido e que foi essa uma das razões por que se criou a lenda em torno
dele. Seus amigos são poucos mas escolhidos. Alguns moram no Rio: Hélio
Pellegrino, Otto Lara Resende, Fernando Sabino, José Carlos Oliveira, Fausto
Cunha. De vez em quando ele viaja e se encontra com eles; mas não pensa em
mudar-se para o Rio: "Tenho pavor da cidade grande."
Sobre
o isolamento em Curitiba: "Não posso me comunicar com escritores que estão
ainda na pré-história da literatura." E conta: "Acho que Curitiba é a
capital do Brasil onde menos se vendem os meus livros."
Já é
quase de madrugada, e Dalton, depois de conversar sobre literatura, rir, comer,
dançar numa boate, prepara um manuscrito para a entrevista.
"Quê
que eu digo?", ele pergunta.
Pensa
um pouco, e escreve: "Meu lugar é entre os últimos dos contistas
menores."
Em "De contista para contista", à página 27 da 11ª edição do jornal "Cândido", do Paraná, publicado em junho de 2012, disponível em < http://issuu.com/bibliotecapr/docs/candido11_baixa >, Luiz Vilela, em entrevista, narra as circunstâncias de seu encontro, em 1968, com Dalton Trevisan, e fala de seu relacionamento com o escritor curitibano. Reproduzimos, abaixo, parte da página do "Cândido" e, logo em seguida, a versão original da entrevista:
— Vilela, em que circunstância se deu a
entrevista com o Dalton?
— Bom, em 1968 houve o Concurso Nacional de Contos, do
Paraná, promovido pela Fundepar. Cada concorrente devia apresentar, sob
pseudônimo, um conjunto de três contos, que seriam julgados por uma comissão
constituída de cinco membros, recrutados entre escritores de Curitiba, São
Paulo e Rio de Janeiro. Houve mais de 1.200 concorrentes, com mais de 3.500
contos, vindos das mais diferentes regiões do país. Em 26 de junho saiu o
resultado. O ganhador: Dalton Trevisan. Além dele, e de acordo com o
regulamento, outros cinco autores classificados em igualdade de condição: Lygia
Fagundes Telles, Ignácio de Loyola, Flávio José Cardoso, Jurandir Ferreira e
Luiz Vilela. A entrega dos prêmios seria feita no dia 29, sexta-feira, pelo
governador, Paulo Pimentel, em sessão solene, no Palácio Iguaçu. Todas essas
notícias chegaram de imediato, por telex, ao jornal em que eu trabalhava, o Jornal
da Tarde. Cumprimentos e abraços dados, o jornal me liberou para ir receber
o prêmio e me encarregou, como enviado especial, de entrevistar o Dalton.
Assim, no dia 29, eu desembarcava no Aeroporto Salgado Filho, com uma dupla
missão: receber meu prêmio e entrevistar Dalton Trevisan. Ambas as missões
foram devidamente cumpridas. Alguns meses depois saía, editado pela Bloch, o
livro com os contos premiados: Os 18 Melhores Contos do Brasil.
— Em 1968 o Dalton já tinha a fama de recluso. Por que você
acha que ele aceitou lhe falar da família, de seus hábitos de escrita e de sua
obra?
— A explicação me foi dada pelo próprio Dalton, assim que
nos encontramos. Eu, ele me disse, ele sabia que conhecia sua obra; mas havia
gente que queria entrevistá-lo e não havia lido nem um só de seus livros. E por
que ele disse isso? É simples. Um ano antes, em 1967, eu havia publicado meu
primeiro livro, de contos, o Tremor de Terra, que ganhou, a seguir, em
Brasília, o Prêmio Nacional de Ficção, na época o maior prêmio literário do
país. Pouco depois, com perguntas elaboradas por escritores mineiros de Belo
Horizonte, jovens e velhos, o Estado de Minas fez comigo uma grande
entrevista. Uma das perguntas foi: “Qual o escritor que mais o influenciou como
contista?” A minha resposta: “Um brasileiro: Dalton Trevisan. Um estrangeiro:
Hemingway.” Mandei a entrevista para o Dalton, com quem eu nunca tivera até
então nenhum contato. Dias depois recebi dele uma de suas famosas brochuras,
com dedicatória.
— Depois dessa entrevista, você teve mais algum contato com
o Dalton?
— Em 1971, quando eu estava
às voltas com a publicação de meu primeiro romance, Os Novos, recebi
dele uma cartinha simpática: “Soube que você está escrevendo um romance e
desejo-lhe boa sorte. Grande abraço do seu velho Dalton.” Alguns meses depois,
no começo de 1972, com o meu romance já publicado, planejei ir a São Mateus do
Sul, onde minha irmã morava, e até hoje mora, para passar com ela o feriado de
Carnaval. Escrevi ao Dalton contando o meu plano e manifestando o meu desejo
de, na oportunidade, dar um pulo a Curitiba para encontrá-lo. Ele me respondeu:
“Grande alegria será bebermos umas e outras celebrando o seu romance.” Acabei
não indo. Mas em setembro fui, e então, estando em São Mateus, tirei um dia
para ir a Curitiba, com a intenção de encontrá-lo. Encontramo-nos, fomos para
um bar próximo à rodoviária e lá ficamos bebendo cerveja e batendo papo até a
hora de meu ônibus sair. Foi a última vez que o vi. Depois disso não tivemos
mais nenhum contato. Mas, é claro, continuei acompanhando a sua trajetória de
autor e lendo sempre os seus livros. Que ele, em seus mais de 80 anos, continue
a escrever e a publicar, só pode ser motivo de admiração para todos nós, os
seus leitores.
Status, 1979. .
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