terça-feira, 26 de junho de 2012

LUIZ VILELA: 55 ANOS DE FICÇÃO - 5

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LUIZ VILELA E DALTON TREVISAN


            Dalton Trevisan, que recebeu recentemente o Prêmio Camões, o mais prestigioso da atualidade em língua portuguesa, fez no dia 14 de junho 87 anos. Associando-se às homenagens prestadas ao escritor, este blog transcreve a famosa entrevista que com ele fez Luiz Vilela e que foi publicada no Jornal da Tarde de 6 de julho de 1968.
Transcrevemos também, aqui, a entrevista de Vilela ao tablóide Cândido deste mês, contando as circunstâncias em que aquela entrevista se deu e, a partir dela, a sua relação pessoal com o escritor paranaense. Na oportunidade, reproduzimos uma das cartas citadas na entrevista.
Reproduzimos, ainda, algumas fotos de Edison Jansen, do jornal O Estado do Paraná, registrando o encontro inicial dos dois escritores em Curitiba, em 2 de julho de 1968.
Por fim, reproduzimos uma declaração de Dalton sobre alguns contistas, entre os quais Luiz Vilela, constante de uma entrevista gravada sem o conhecimento do escritor e publicada na revista Status, em 1979.


A HISTÓRIA DO CONTADOR DE HISTÓRIAS

                                                                                                                                             Luiz Vilela

         O professor de Português, no ginásio, tinha marcado uma redação para casa. Um dos alunos escreveu sobre uma criança pobre passando fome. O professor disse que o menino era "comunista e neurótico". Comunista ele já sabia o que era (isso foi no tempo do Estado Novo); neurótico, ele foi em casa olhar no dicionário. Agora, aos 43 anos, ele lembra: "Foi esse o meu primeiro contato com os julgadores literários." Mas os críticos de hoje não pensam como aquele professor: eles acham que Dalton Trevisan é o maior contista brasileiro vivo, e há oito dias lhe deram o maior prêmio do maior concurso nacional de contos.
         Magro, de cabelos claros e alguns já brancos, óculos de lentes grossas, vestido de maneira simples e meio displicente, ele vai pelas ruas de Curitiba com alguns amigos, falando de sua vida e de sua literatura. De vez em quando a conversa é interrompida por um conhecido, que lhe dá os parabéns; mas isso acontece pouco: para quase todas essas pessoas ele é apenas um cidadão comum, sem nada de especial.
         Numa praça, sentados num banco de madeira, estão quatro bêbados, sujos e barbudos; Dalton Trevisan aponta para eles e diz, referindo-se a um de seus contos: "Aí o 'cemitério de elefantes'..."
         Ele continua a lembrar coisas de quando começou a escrever. O que aconteceu no ginásio não o desanimou; pelo contrário. "Os elogios são inúteis; uma crítica me estimula quando é negativa." Quando uma grande editora publicou pela primeira vez seus contos, um crítico importante falou mal deles. "Isso foi ótimo para mim", diz Dalton. Não é que concordasse com o crítico: mais tarde, já reconhecido por quase toda a crítica como um dos maiores escritores brasileiros contemporâneos, Dalton, ao publicar um novo livro por outra grande editora, pensou em "pôr aquele artigo como orelha do livro".
         Mas a fama custou a chegar, e foi preciso muita luta. Depois das redações no ginásio — "eu fazia não só as que o professor marcava, mas também as que o livro sugeria no fim da lição, porque eu gostava de escrever" — veio a Faculdade de Direito, onde ele era bom aluno e bom atleta: ganhou várias medalhas nas competições. Ao mesmo tempo, era repórter de polícia: "Foi a primeira vez que eu vi um morto."
         Apareceram os seus primeiros livros, Sonata ao Luar e Sete Anos de Pastor, que não tiveram quase nenhuma repercussão entre os críticos e que ele hoje diz arrepender-se de ter publicado.
         Ele criou também, com outros, a revista literária Joaquim, que ficou famosa e revelou nomes hoje importantes em nossas artes.
         Mais tarde, já em 59, a editora José Olympio publica Novelas Nada Exemplares. Tiragem: 1.000 exemplares. O livro quase não vende. Os editores fecham as portas a Dalton.
         Ele perde algumas ilusões, mas não perde a vontade de escrever. Tem a idéia de fazer algo parecido com a literatura de cordel, do nordeste: são pequenas brochuras, em papel de qualidade inferior, que ele distribui de graça a alguns amigos. "Eram duzentos exemplares; eu me sentia realizado: em poucos dias a edição se esgotava."
         Alguns críticos comentavam com entusiasmo os contos do estranho e misterioso escritor que morava em Curitiba e que ninguém conhecia. A curiosidade dos leitores aumentou. Começou a nascer um mito. Os editores se interessaram. O resto da história é conhecido: outros livros (Morte na Praça, Cemitério de Elefantes, O Vampiro de Curitiba), prêmios, antologias, traduções para o estrangeiro. Mas, para muitos, o mito continua: Nelsinho, o vampiro que desliza pela noite fria de Curitiba, à procura de mulheres, não é outro senão o próprio Dalton Trevisan.
         O vampiro sorri e confessa: "Eu sou casado, muito bem casado." Ele tem duas filhas e diz: "Gostaria de ver o nome delas na reportagem; se chamam Rosana e Isabel." As outras pessoas da família: dois irmãos, que, como ele, trabalham na cerâmica do pai. A mãe morreu no ano passado, e depois disso ele ficou seis meses sem escrever.
Alguém pergunta se eles lêem os seus contos; Dalton responde que sim, mas diz que às vezes preferiria que não lessem. "Eles devem pensar: como que uma pessoa educada com carinho, nos melhores sentimentos, virou esse monstro moral?"
         É meia-noite num bar, e o garçom acaba de pôr mais uma dose de uísque nos copos. O rosto de Dalton, vermelho, tem um aspecto carregado e trágico: lembra alguns retratos de Giovanni Papini no fim da vida, um Papini mais moço. "É isso o que o escritor é: um monstro moral." Sua voz, que é interior, dá um ar mais sombrio ainda à frase. "O escritor é uma pessoa que não merece nenhuma confiança. Um amigo chega e me conta as maiores dores; eu escuto com atenção, mas estou é recolhendo material para mais um conto. E eu sei disso na hora. Surge então a má consciência. Sei que estou fazendo assim e não desejaria fazer, mas não há outro jeito. O escritor é um ser maldito."
         "Vejam", continua Dalton, "meu conto 'Último dias' é sobre a morte de minha avó. Era uma pessoa por quem eu tinha a maior afeição. No entanto isso não aparece no conto, só aparecem coisas negativas. Não sei, talvez fosse inabilidade literária minha."
Um breve silêncio para o uísque. Dalton fica de cabeça baixa, olhando para a mesa, coberta com um forro vermelho. O bar está na penumbra. "Mudar a vida", ele diz; "quando comecei a escrever, eu pensava nisso: changer la vie, como disse Rimbaud. Mas isso evanesceu logo."
         Rimbaud, aos vinte e poucos anos, parou de escrever e foi ser mercador na África. "Dalton, você já pensou em parar de escrever algum dia?", um amigo pergunta. "Bom, eu às vezes passo meses inteiros sem escrever nada; mas parar definitivamente, não. Tenho fases: há ocasiões em que escrevo três, quatro contos em poucos dias. Mas, depois, passo muito tempo sem escrever uma linha. Também reescrevo sempre os meus contos. Às vezes me dá medo de morrer: então disparo a escrever."
         "Escrever é a única justificativa que encontro para estar vivo. Meus gestos cotidianos são vazios. Mesmo o amor e o sexo; o sexo dura muito pouco tempo. As outras coisas? Eu não tenho o dom de ganhar dinheiro; nem ambição de poder. Escrever é uma atividade inútil, mas, para mim, ainda é a menos inútil de todas e a que me faz continuar vivo. E qual a compensação de escrever? Uma frase boa que a gente cria, uma imagem, coisas assim, que agradam num momento e no dia seguinte já nos deixam insatisfeitos. O escritor troca a sua vida por nada."
          A noite de Curitiba está fria mas agradável. Alguém sugere um cafezinho. Dalton sorri: "Eu não. Não quero tirar o gostinho bom do uísque."
         Na redação de um jornal, um repórter lhe dá algumas fotos suas. Ele olha uma por uma com atenção: "Puxa, não é que estou bacana aqui? Estou começando a gostar dessa coisa toda..." Mesmo quando está mais sério, Dalton não parece ter 43 anos. Ele não tem nada de um quarentão; lembra um jovem professor universitário, calado, atento, extremamente simpático.
         Diz que é um tímido e que foi essa uma das razões por que se criou a lenda em torno dele. Seus amigos são poucos mas escolhidos. Alguns moram no Rio: Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende, Fernando Sabino, José Carlos Oliveira, Fausto Cunha. De vez em quando ele viaja e se encontra com eles; mas não pensa em mudar-se para o Rio: "Tenho pavor da cidade grande."
         Sobre o isolamento em Curitiba: "Não posso me comunicar com escritores que estão ainda na pré-história da literatura." E conta: "Acho que Curitiba é a capital do Brasil onde menos se vendem os meus livros."
         Já é quase de madrugada, e Dalton, depois de conversar sobre literatura, rir, comer, dançar numa boate, prepara um manuscrito para a entrevista.
         "Quê que eu digo?", ele pergunta.
         Pensa um pouco, e escreve: "Meu lugar é entre os últimos dos contistas menores."

Em "De contista para contista", à página 27 da 11ª edição do jornal "Cândido", do Paraná, publicado em junho de 2012, disponível em < http://issuu.com/bibliotecapr/docs/candido11_baixa >, Luiz Vilela, em entrevista, narra as circunstâncias de seu encontro, em 1968, com Dalton Trevisan, e fala de seu relacionamento com o escritor curitibano. Reproduzimos, abaixo, parte da página do "Cândido" e, logo em seguida, a versão original da entrevista:
            
 — Vilela, em que circunstância se deu a entrevista com o Dalton?
— Bom, em 1968 houve o Concurso Nacional de Contos, do Paraná, promovido pela Fundepar. Cada concorrente devia apresentar, sob pseudônimo, um conjunto de três contos, que seriam julgados por uma comissão constituída de cinco membros, recrutados entre escritores de Curitiba, São Paulo e Rio de Janeiro. Houve mais de 1.200 concorrentes, com mais de 3.500 contos, vindos das mais diferentes regiões do país. Em 26 de junho saiu o resultado. O ganhador: Dalton Trevisan. Além dele, e de acordo com o regulamento, outros cinco autores classificados em igualdade de condição: Lygia Fagundes Telles, Ignácio de Loyola, Flávio José Cardoso, Jurandir Ferreira e Luiz Vilela. A entrega dos prêmios seria feita no dia 29, sexta-feira, pelo governador, Paulo Pimentel, em sessão solene, no Palácio Iguaçu. Todas essas notícias chegaram de imediato, por telex, ao jornal em que eu trabalhava, o Jornal da Tarde. Cumprimentos e abraços dados, o jornal me liberou para ir receber o prêmio e me encarregou, como enviado especial, de entrevistar o Dalton. Assim, no dia 29, eu desembarcava no Aeroporto Salgado Filho, com uma dupla missão: receber meu prêmio e entrevistar Dalton Trevisan. Ambas as missões foram devidamente cumpridas. Alguns meses depois saía, editado pela Bloch, o livro com os contos premiados: Os 18 Melhores Contos do Brasil.

— Em 1968 o Dalton já tinha a fama de recluso. Por que você acha que ele aceitou lhe falar da família, de seus hábitos de escrita e de sua obra?
— A explicação me foi dada pelo próprio Dalton, assim que nos encontramos. Eu, ele me disse, ele sabia que conhecia sua obra; mas havia gente que queria entrevistá-lo e não havia lido nem um só de seus livros. E por que ele disse isso? É simples. Um ano antes, em 1967, eu havia publicado meu primeiro livro, de contos, o Tremor de Terra, que ganhou, a seguir, em Brasília, o Prêmio Nacional de Ficção, na época o maior prêmio literário do país. Pouco depois, com perguntas elaboradas por escritores mineiros de Belo Horizonte, jovens e velhos, o Estado de Minas fez comigo uma grande entrevista. Uma das perguntas foi: “Qual o escritor que mais o influenciou como contista?” A minha resposta: “Um brasileiro: Dalton Trevisan. Um estrangeiro: Hemingway.” Mandei a entrevista para o Dalton, com quem eu nunca tivera até então nenhum contato. Dias depois recebi dele uma de suas famosas brochuras, com dedicatória.

— Depois dessa entrevista, você teve mais algum contato com o Dalton?
— Em 1971, quando eu estava às voltas com a publicação de meu primeiro romance, Os Novos, recebi dele uma cartinha simpática: “Soube que você está escrevendo um romance e desejo-lhe boa sorte. Grande abraço do seu velho Dalton.” Alguns meses depois, no começo de 1972, com o meu romance já publicado, planejei ir a São Mateus do Sul, onde minha irmã morava, e até hoje mora, para passar com ela o feriado de Carnaval. Escrevi ao Dalton contando o meu plano e manifestando o meu desejo de, na oportunidade, dar um pulo a Curitiba para encontrá-lo. Ele me respondeu: “Grande alegria será bebermos umas e outras celebrando o seu romance.” Acabei não indo. Mas em setembro fui, e então, estando em São Mateus, tirei um dia para ir a Curitiba, com a intenção de encontrá-lo. Encontramo-nos, fomos para um bar próximo à rodoviária e lá ficamos bebendo cerveja e batendo papo até a hora de meu ônibus sair. Foi a última vez que o vi. Depois disso não tivemos mais nenhum contato. Mas, é claro, continuei acompanhando a sua trajetória de autor e lendo sempre os seus livros. Que ele, em seus mais de 80 anos, continue a escrever e a publicar, só pode ser motivo de admiração para todos nós, os seus leitores.


Edison Jansen /  O Estado do Paraná / 2 jul. 1968


Status, 1979.                               .

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