sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Globo Rural republica crônica de Luiz Vilela

     A revista GLOBO RURAL republicou a crônica "Ter um sítio", de Luiz Vilela, publicada originalmente em 1987. A foto do autor que ilustra a matéria é dos arquivos do GPLV, trata-se de registro feito em maio de 2011 por Pauliane Amaral, então mestranda, quando em Ituiutaba um grupo de pós-graduandos da UFMS, tendo por líder o Prof. Dr. Rauer Ribeiro Rodrigues, criou o Grupo que mantém este Blog.

      Reproduzimos abaixo a página do site da revista, que está em < http://revistagloborural.globo.com/Noticias/Cultura/noticia/2017/01/ter-um-sitio-cronica-de-luiz-vilela.html >.

CULTURA20 de Janeiro de 2017


"Ter um sítio", crônica de Luiz Vilela

O escritor mineiro também é autor de livros, como "Tremor 
de Terra", de contos e o romance "Entre amigos"

POR LUIZ VILELA 

thinkstock-sitio-fazenda-chacara-interior-rural-campo-casa-rancho-granja-luis-vilela (Foto: Thinkstock)

















Ter um sítio é bom, muito bom. Pensei nisso no primeiro dia em que o percorri como dono, ao parar na
sombra da imensa antiga mangueira, sentindo no rosto o vento da tarde e escutando o canto dos
passarinhos, e voltei a pensar muitas vezes, ao longo desses onze anos em que o tenho.
Mas se quem nunca teve um sítio e deseja ter acha que é só isso o que você pensa, ou é um perfeito
desinformado ou um perfeito idiota, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Há horas, meu caro, há horas em
que o que você mais gostaria de ser no mundo é um mágico: um mágico, para, num simples passe, fazer
desaparecer de imediato e para sempre seu amado sítio. 
luiz-vilela-escritor-autor (Foto: Grupo de Pesquisa Luiz Vilela / Pauliane Amaral)
Imagine, por exemplo, que um dia seu
empregado, sem qualquer motivo, avise
que vai sair. Bom, o mínimo que você pede
é que ele fique mais uns dias, até você
arranjar outro, pois um empregado não se
arranja assim de repente. Ele concorda e
promete ficar. Ótimo. Três dias depois, ao
voltar ao sítio por um imprevisto, você
encontra os porcos berrando de sede e
fome, as cercas rebentadas e o gado no
pomar, e a égua, depois de muita procura,
lá no pasto do vizinho. O que você não
encontra é o filho duma égua do
empregado: esse caiu no mundo. Eu disse
imagine: mas foi isso, foi exatamente isso
o que aconteceu comigo logo no primeiro
ano.
Houve depois coisas piores, bem piores, tanto na parte humana quanto na parte da natureza, embora,
comparadas a algumas que vi ou ouvi de outras pessoas, eu possa dizer que não foram nada, que sou um
sujeito de sorte. Na parte da natureza, o pior foi sempre, sem dúvida, as secas. É terrível. Só quem passou
sabe. Você ver o gado emagrecendo, com aquele olhar que dói na gente. Os pastos rapados. O trato
acabando. E dia após dia, noite após noite, olhar para o céu em busca de um sinalzinho de chuva, e nada. É
terrível.
É nessa hora que seu empregado, se ele é dedicado, vira um verdadeiro herói. Mas, por maior que seja a
dedicação, uma manhã ele chega e conta que uma bezerrinha, aquela pintada, foi no córrego beber água,
escorregou e caiu, e aí, como ela estava fraquinha, não deu conta de se levantar e morreu afogada. Está bem:
era só uma bezerrinha; muitos, na região, ja tinham perdido dezenas e até centenas de cabeças de gado (isso
foi no ano passado, a pior seca que já vi). Mas, diabo, era a minha bezerrinha; e além disso, morrer desse
jeito, afogada, no raso…

Uma manhã ele chega e… É quase sempre assim que vêm as más notícias: de manhã, tirando você da cama.
As boas? São raras, ou, talvez, raramente dadas  ̶  como se notícia boa não fosse notícia. Um pequeno
catálogo das más: geou essa noite; a vaca perdeu a cria; a casinha da cisterna desabou; roubaram o latão
de leite; o desintegrador não quer funcionar; o boi tá com bicheira; a porca tá com batedeira; a mola do
carrinho quebrou; a bomba d’água enguiçou; roubaram de novo o latão; a bomba d’água enguiçou de novo.
Às vezes a notícia é uma só; às vezes uma sequência, contada com sinistros intervalos de silêncio.
Um dia a notícia foi o próprio empregado, trazido por um amigo: numa farra sábado à noite no sítio, um
companheiro lhe enfiara a faca na barriga. E lá vai você, bocejando de sono, em plena manhã de domingo,
mexer com hospital e polícia, e ainda ouvir as partes, dar conselhos, acalmar os ânimos, para que não saia
mais alguma facada ou tiro e a morte de alguém; e depois, claro, ainda providenciar com urgência um
substituto provisório para o empregado, porque senão, do jeito que as coisas andam, quando você chegar lá
no sítio, não encontra nem o rastro dos animais. Ufa! Conseguida uma certa ordem no caos, você se
esborracha numa cadeira e pensa: na primeira oportunidade que tiver, vou vender a merda desse sítio e
nunca mais mexer com isso; mais nunca.

Mas o tempo passa, e os problemas acabam se resolvendo. Assim como as chuvas, que acabam voltando  ̶  e
capim de novo enverdece e cresce, e o gado engorda, e o pomar se cobre de mangas, cajus, goiabas,
jabuticabas, e os passarinhos cantam numa endiabrada alegria, e o vento da tarde sopa em seu rosto, e você
pensa: é bom ter um sítio, muito bom.

Publicado originalmente em junho de 1987, na edição 21 da revista Globo Rural.

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