sábado, 15 de outubro de 2016

O Filho de Machado de Assis - 3

DAS IDOLATRIAS

O Filho de Machado de Assis
Luiz Vilela – Ed. Record
2016, 128 p.

         O escritor mineiro Luiz Vilela está cada vez mais escrevendo narrativas de cunho dissertativo, nas quais, por meio de diálogos, geralmente dois homens, expõe a sua “tese” sobre um fenômeno social da contemporaneidade. Já havia feito isso em pelo menos dois contos da sua última coletânea, Você Verá, de 2013, com as narrativas “Mataram o rapaz do posto”, que discorre sobre a violência nas cidades do interior, e “Corpos”, sobre a invasão de privacidade na internet. Esses contos contêm muitas galhofas (e no caso nos valemos de uma expressão bem machadiana), travestidas de diálogos cortantes, recheados de ironia. Pode-se observar a mesma tendência na novela O filho de Machado de Assis, recentemente publicada. Através de uma longa conversa entre um professor e um aluno, quase um discípulo, e que é o narrador, discorre-se, entre outros assuntos, sobre a idolatria, mote presente ou subterrâneo na maior parte dos diálogos encenados.
         Elementos do gênero novela se fazem presentes na narrativa, evocando, assim, na estrutura, suas outras novelas, Bóris e Dóris (2006), Te amo sobre todas as coisas (1994) e O choro no travesseiro (1979). Revisitemos a definição do gênero novela no Dicionário de Termo Literários, de Massaud Moisés. Segundo Moisés, a novela possui “pluralidade dramática”, ou seja, uma série de ações que se encadeiam umas nas outras, cada uma com começo, meio e fim, mas que participam todas de um conjunto único.
 É o caso de O filho de Machado de Assis. Um narrador em primeira pessoa, Mac, formado em Letras, recebe um telefonema de seu professor, Simão. O professor diz a Mac que tem um assunto muito importante, “um segredo de Estado” a lhe contar, por isso pede que ele vá até a sua casa. Mac está de saída para a praia com a namorada (o enredo se passa no Rio de Janeiro), mas adia o passeio e vai até a casa do professor. Quando Mac chega à residência do professor, este lhe fala de uma pesquisa que fazia na Biblioteca Nacional, na qual fez uma descoberta que considera “bombástica”: diferente do que todos acreditam, Machado de Assis tivera um filho, contrariando a última fala das Memórias Póstumas de Brás Cubas.
O foco narrativo se concentra basicamente na figura de Simão, tornando Mac, apesar de algumas interferências, quase que um narrador testemunha, que atua como escada para as digressões do professor. São as impressões de Simão, sob o foco do narrador-testemunha, que constroem a sucessão de nós dramáticos da novela.
A partir desse ponto, temos, apesar de ser uma longa conversa, uma série de pequenos blocos de assuntos, como se fossem uma sequência de “pequenos contos”, entremeados de algumas digressões, mas que formam um único corpo, configurando, assim, a “pluraridade dramática” preconizada por Massaud Moisés para a novela.
O autor é hábil em encadear cada “bloco” de assunto, nesse longo e interessante diálogo, de modo que podemos ver, com clareza, outra característica da novela, segundo Massaud Moisés: a “sucessividade”. O fato de Simão ter dito que fez uma grande descoberta desencadeia uma série de outros assuntos. Primeiro, o professor questiona-se de qual será o impacto dessa notícia para o ambiente literário, em particular para os pesquisadores que escreveram trabalhos sobre a obra de Machado baseados no fato dele não ter tido filhos.
Ainda segundo Massaud Moisés, ao teorizar sobre o gênero novela, “o tempo da narrativa acompanha essa estrutura linear”, e, uma vez “não havendo restrição cronológica, o novelista pode fazer uso arbitrário do tempo da ação”, desde que observe “o transcurso vital das personagens desde o seu nascimento” e se concentre “nos momentos em que se processa cada ‘aventura’ e reduz[a] o passado a breves notações”.
Em O Filho de Machado de Assis, toda a ação se concentra em um único momento, uma tarde de sábado, como o narrador deixa claro ao começar narrativa. Esse tempo cronológico só é interrompido quando o narrador, por meio de uma digressão, lembra de uma visita que fizera a um padre, que fora seu professor, e hoje está em um sanatório. O que não deixa de ser curioso, pois o nome do professor remete ao Simão Bacamarte, diretor de um hospício, personagem dos mais célebres de Machado de Assis, da também novela O alienista. Esse tempo cronológico sem intervalos terá uma pequena variação apenas no fim da narrativa de Luiz Vilela.
O espaço em O filho de Machado de Assis está associado ao tempo, assim, quando este se altera, o espaço também se altera. O espaço se concentra na sala da casa do professor Simão, mas antes temos a casa do narrador, e quando há uma digressão, temos o espaço do sanatório; esses espaços evocados surgem em passagens curtas, e são acompanhados da mudança no tempo narrativo.
Há uma concentração da ação sobre poucos personagens, basicamente dois: Mac e o professor Simão. Por vezes aparece a voz da namorada de Mac, a da empregada e a da vizinha do professor Simão, além da alusão a um irmão do professor. Com relação a essa personagem, Vilela “apronta” mais uma das suas galhofas, num dos momentos geniais da novela, a começar pelo nome: Judete Jordão ­– alcunhado “Cão Hidrófobo” pelo professor, nomeado de “Caim”, e que chama ao professor como “Simão Escorpião".
E assim as conversas e digressões vão se sucedendo, tendo como leitmotiv, ora de maneira velada, ora de maneira explícita, o tema da idolatria. Um assunto que, parece, realmente, incomoda ao professor de “vasta cabeleira toda desgrenhada”. 
O dicionário eletrônico Houaiss registra as seguintes definições para “idolatria”: “1.culto que se presta a ídolos. 2.fig. Amor excessivo, admiração exagerada”. No longo discurso, disfarçado de diálogo, o professor Simão (não nos pareceria exagero tê-lo como alterego de Luiz Vilela), entre outros assuntos, sempre retoma esse “amor excessivo, admiração exagerada”, primeiro por Machado de Assis, depois por tudo que as pessoas tendem a admirar demais. A conversa com Mac já está bem adiantada, e então o professor Simão diz:
“O Machado o quê? Está pensando que o Machado era santo?”
“Não, não é isso”, eu disse
“Ninguém é santo, meu caro.”
“Eu sei.”
“Ninguém é santo. Santidade é uma invenção da igreja.”
(p. 31).
Outro exemplo dessa idolatria vemos um pouco mais adiante, quando o narrador, Mac, diz que Machado de Assis foi o maior escritor brasileiro. O professor Simão então questiona tal classificação. E emenda:
“Será que já não é tempo de pararmos com essa machadolatria?”, ele disse.
“Machadolatria...”, eu repeti
“Toda idolatria é nefasta. Essa não o é menos.”
(p. 34-35).
Um pouco mais a frente, o professor se lembra de algumas curiosidades sobre a vida dos escritores Arthur Miller e Günter Grass: o primeiro rejeitou um filho “mongoloide” e o segundo “fizera parte da Juventude Hitlerista” (p. 43). E então o professor Simão acrescenta mais um argumento a respeito da idolatria: “Então é isso. Há muita mentira, muita invenção, muita fantasia. É muito difícil saber a verdade sobre as pessoas e as coisas. Muito difícil...” (p. 43).
         O tema da idolatria volta a fazer parte da conversa entre o professor e Mac quando lembram de Tiradentes e os vários mitos que envolvem a sua figura, a presença de uma filha, até então também desconhecida, e a sua imagem, com cabelos grandes e barba, associada à imagem de Cristo, etc.
         Mais adiante, em outra cena memorável e engraçadíssima, o professor Simão, dando continuidade à narração da sua descoberta, conta o encontro que teve com uma mulher jovem na Biblioteca Nacional assim que descobrira que Machado de Assis tinha tido um filho. Querendo compartilhar essa grande notícia com alguém, resolve contar para essa moça. Ela se confunde sobre episódios da vida de Machado de Assis, e o diálogo dos dois, outro argumento a respeito da idolatria e do quão essa pode levar a interpretações por vezes desastrosas sobre a vida de alguém importante, é um dos momentos mais hilários e interessantes da narrativa.
Vilela extrai esses momentos humorísticos das relações humanas no diálogo encenado. Por outro lado, há momentos em que o narrador da novela tenta criar humor em situações um tanto forçadas, como é a cena do estalo dos dedos. Aqui, embora pareça forçado, o bloco narrativo do tlec (o estalo dos dedos) tem como função destacar a futilidade que permeia o mass media contemporâneo, futilidade que se espalha pela sociedade ─ ou, ao contrário, que permeia a contemporaneidade e é assumida e glorificada pela mídia.
         A ideia da idolatria como um problema que assola a sociedade continua a permear o discurso, disfarçado de diálogo, do professor Simão, que insiste na história de Tiradentes; na sequência, o professor fica preocupado com o que dissera à moça da Biblioteca, fica temeroso de que ela espalhe a notícia, e que a grande novidade chegue ao mundo acadêmico antes que ele mesmo a divulgue oficialmente. Luiz Vilela, agora pela voz do professor Simão, faz uma dura crítica, que já havia feito em outras ocasiões e em entrevistas, ao mundo acadêmico, acusando-o de hipocrisia: “Inveja, despeito, ressentimento: esse é o feijão com arroz dessa gente. Vaidade é o ar que eles respiram. Vaidade e falsidade. Longe dos rapapés e dos salamaleques, a perfídia, a maledicência, a calúnia – a vontade, em suma, de aniquilar o outro.” (p. 81).
         O que parece escapar ao Prof. Simão Serapião é que o motivo da crítica à academia é o mesmo temor que o move ao esconder de Mac onde encontrou a notícia sobre o filho de Machado de Assis, assim como é o mesmo motivo que o faz temer alguma inconfidência da moça da Biblioteca Nacional: a vaidade, a vã glória de ser o autor da descoberta. Simão, também professor acadêmico, não está acima nem é diferente daqueles a que critica ­– como ele mesmo diria, “ninguém é santo”.
         Com um final um tanto quanto imprevisível, a novela termina por reforçar e retomar a “tese” inicial da idolatria; para muitas pessoas, na verdade, o fato de uma figura pública e importante ter escondido ou não que teve um filho não faz a menor diferença. Como exclama a namorada do narrador quando este lhe diz que Machado de Assis havia tido um filho: “E daí?” Se a pergunta da namorada demonstra, talvez, desinteresse pelo assunto, a desimportância do tema, ainda que assuntos como tais sejam dos mais explorados por jornais populares e revistas de fofocas, temos aqui outro motivo recorrente da obra de Vilela: a alienação da mulher quanto à informação, à formação básica, ao raciocínio lógico mais elementar.
           Tratemos da linguagem em O filho de Machado de Assis.
         Segundo o professor Rauer Ribeiro Rodrigues, em uma resenha sobre o romance Perdição, “A linguagem, em Luiz Vilela, desde a obra de estreia, o volume de contos Tremor de terra, de 1967, tem por característica a simplicidade vocabular, a seleção lexical de exatidão expressiva, o registro coloquial, a ordem direta, as metáforas sem rebuscamento, a profundidade do pensamento não sendo obscurecida por torneios ou gongorismos” (veja aqui). Tais características se mantêm em O Filho de Machado de Assis: a simplicidade vocabular, numa linguagem cristalina, registros coloquiais, e até brincando com esses registros, na voz de Mac, que o tempo todo corrige o professor para o politicamente correto, “afrodescendente” ao invés de “preto”, entre outros comentários. Predomina a ordem direta e metáforas sem rebuscamento. Tudo isso ainda está lá, na escrita de Vilela. Porém, ao olharmos para as suas obras anteriores, percebemos que Vilela se repete em algumas fórmulas narrativas, encena a cena seguindo estratégias de contos, novelas ou romances anteriores, como o começo e o fim com ares fortemente mecânicos, com um deus ex machina se impondo no cotidiano, já vistos em outras narrativas ­– o discurso enunciado e a vida vivida se impõem entre os clichês da própria vida e da enunciação anteriormente enunciada.
Em suma, ao tratar, em O Filho de Machado de Assis, do tema da idolatria, entrelaçando-a com temas candentes da sociedade brasileira, entre outros assuntos contemporâneos aqui reiterados por Luiz Vilela e sempre presentes em sua obra, a novela traz o mesmo autor de sempre, em suas obsessões, em suas qualidades e em seu modo de narrar que se repete. Escritor sempre determinado a buscar novos caminhos em sua práxis, O Filho parece repetir passos de narrativas anteriores, como que obediente a um pai autoritário. São passos divertidos e envolventes, é verdade, mas que têm pouco do frescor que Vilela costuma projetar a cada nova empreitada. Claro, há aspectos novos, nuances do inventor criativo na pena de um mestre da escrita. A novidade em O filho de Machado de Assis está na derrisão da idolatria, mais uma crítica feroz do Luiz Vilela iconoclasta de sempre.

Rodrigo Andrade Pereira
Doutorando em Estudos Literários

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