DAS IDOLATRIAS
O Filho de Machado de
Assis
Luiz Vilela – Ed.
Record
2016, 128 p.
O escritor mineiro Luiz Vilela está
cada vez mais escrevendo narrativas de cunho dissertativo, nas quais, por meio
de diálogos, geralmente dois homens, expõe a sua “tese” sobre um fenômeno
social da contemporaneidade. Já havia feito isso em pelo menos dois contos da
sua última coletânea, Você Verá, de 2013, com as
narrativas “Mataram o rapaz do posto”, que discorre sobre a violência nas
cidades do interior, e “Corpos”, sobre a invasão de privacidade na internet. Esses
contos contêm muitas galhofas (e no caso nos valemos de uma expressão bem machadiana),
travestidas de diálogos cortantes, recheados de ironia. Pode-se observar a mesma
tendência na novela O filho de Machado de Assis, recentemente publicada. Através de
uma longa conversa entre um professor e um aluno, quase um discípulo, e que é o
narrador, discorre-se, entre outros assuntos, sobre a idolatria, mote presente
ou subterrâneo na maior parte dos diálogos encenados.
Elementos do gênero novela se fazem
presentes na narrativa, evocando, assim, na estrutura, suas outras novelas, Bóris
e Dóris (2006), Te amo sobre todas as coisas (1994)
e O
choro no travesseiro (1979). Revisitemos a definição do gênero novela
no Dicionário
de Termo Literários, de Massaud Moisés. Segundo Moisés,
a novela possui “pluralidade dramática”, ou seja, uma série de ações que se
encadeiam umas nas outras, cada uma com começo, meio e fim, mas que participam
todas de um conjunto único.
É o caso de O filho de Machado de Assis. Um
narrador em primeira pessoa, Mac, formado em Letras, recebe um telefonema de
seu professor, Simão. O professor diz a Mac que tem um assunto muito
importante, “um segredo de Estado” a lhe contar, por isso pede que ele vá até a
sua casa. Mac está de saída para a praia com a namorada (o enredo se passa no
Rio de Janeiro), mas adia o passeio e vai até a casa do professor. Quando Mac
chega à residência do professor, este lhe fala de uma pesquisa que fazia na
Biblioteca Nacional, na qual fez uma descoberta que considera “bombástica”: diferente
do que todos acreditam, Machado de Assis tivera um filho, contrariando a última
fala das Memórias Póstumas de Brás Cubas.
O
foco narrativo se concentra basicamente na figura de Simão, tornando Mac,
apesar de algumas interferências, quase que um narrador testemunha, que atua
como escada para as digressões do professor. São as impressões de Simão, sob o
foco do narrador-testemunha, que constroem a sucessão de nós dramáticos da
novela.
A
partir desse ponto, temos, apesar de ser uma longa conversa, uma série de
pequenos blocos de assuntos, como se fossem uma sequência de “pequenos contos”,
entremeados de algumas digressões, mas que formam um único corpo, configurando,
assim, a “pluraridade dramática” preconizada por Massaud Moisés para a novela.
O
autor é hábil em encadear cada “bloco” de assunto, nesse longo e interessante
diálogo, de modo que podemos ver, com clareza, outra característica da novela,
segundo Massaud Moisés: a “sucessividade”. O fato de Simão ter dito que fez uma
grande descoberta desencadeia uma série de outros assuntos. Primeiro, o
professor questiona-se de qual será o impacto dessa notícia para o ambiente
literário, em particular para os pesquisadores que escreveram trabalhos sobre a
obra de Machado baseados no fato dele não ter tido filhos.
Ainda
segundo Massaud Moisés, ao teorizar sobre o gênero novela, “o tempo da
narrativa acompanha essa estrutura linear”, e, uma vez “não havendo restrição
cronológica, o novelista pode fazer uso arbitrário do tempo da ação”, desde que
observe “o transcurso vital das personagens desde o seu nascimento” e se
concentre “nos momentos em que se processa cada ‘aventura’ e reduz[a] o passado
a breves notações”.
Em
O
Filho de Machado de Assis, toda a ação se concentra em um único
momento, uma tarde de sábado, como o narrador deixa claro ao começar narrativa.
Esse tempo cronológico só é interrompido quando o narrador, por meio de uma
digressão, lembra de uma visita que fizera a um padre, que fora seu professor,
e hoje está em um sanatório. O que não deixa de ser curioso, pois o nome do
professor remete ao Simão Bacamarte, diretor de um hospício, personagem dos
mais célebres de Machado de Assis, da também novela O alienista. Esse tempo
cronológico sem intervalos terá uma pequena variação apenas no fim da narrativa
de Luiz Vilela.
O
espaço em O filho de Machado de Assis está associado ao tempo, assim,
quando este se altera, o espaço também se altera. O espaço se concentra na sala
da casa do professor Simão, mas antes temos a casa do narrador, e quando há uma
digressão, temos o espaço do sanatório; esses espaços evocados surgem em
passagens curtas, e são acompanhados da mudança no tempo narrativo.
Há
uma concentração da ação sobre poucos personagens, basicamente dois: Mac e o
professor Simão. Por vezes aparece a voz da namorada de Mac, a da empregada e a
da vizinha do professor Simão, além da alusão a um irmão do professor. Com
relação a essa personagem, Vilela “apronta” mais uma das suas galhofas, num dos
momentos geniais da novela, a começar pelo nome: Judete Jordão – alcunhado “Cão
Hidrófobo” pelo professor, nomeado de “Caim”, e que chama ao professor como “Simão
Escorpião".
E
assim as conversas e digressões vão se sucedendo, tendo como leitmotiv, ora de maneira velada, ora de
maneira explícita, o tema da idolatria. Um assunto que, parece, realmente,
incomoda ao professor de “vasta cabeleira toda desgrenhada”.
O
dicionário eletrônico Houaiss registra as seguintes definições para “idolatria”:
“1.culto que se presta a ídolos. 2.fig. Amor
excessivo, admiração exagerada”. No longo discurso, disfarçado de diálogo, o
professor Simão (não nos pareceria exagero tê-lo como alterego de Luiz Vilela),
entre outros assuntos, sempre retoma esse “amor excessivo, admiração
exagerada”, primeiro por Machado de Assis, depois por tudo que as pessoas
tendem a admirar demais. A conversa com Mac já está bem adiantada, e então o
professor Simão diz:
“O
Machado o quê? Está pensando que o Machado era santo?”
“Não,
não é isso”, eu disse
“Ninguém
é santo, meu caro.”
“Eu
sei.”
“Ninguém
é santo. Santidade é uma invenção da igreja.”
(p.
31).
Outro
exemplo dessa idolatria vemos um pouco mais adiante, quando o narrador, Mac,
diz que Machado de Assis foi o maior escritor brasileiro. O professor Simão
então questiona tal classificação. E emenda:
“Será
que já não é tempo de pararmos com essa machadolatria?”, ele disse.
“Machadolatria...”,
eu repeti
“Toda idolatria é nefasta. Essa não o
é menos.”
(p.
34-35).
Um
pouco mais a frente, o professor se lembra de algumas curiosidades sobre a vida
dos escritores Arthur Miller e Günter Grass: o primeiro rejeitou um filho
“mongoloide” e o segundo “fizera parte da Juventude Hitlerista” (p. 43). E
então o professor Simão acrescenta mais um argumento a respeito da idolatria:
“Então é isso. Há muita mentira, muita invenção, muita fantasia. É muito
difícil saber a verdade sobre as pessoas e as coisas. Muito difícil...” (p.
43).
O tema da idolatria volta a fazer parte
da conversa entre o professor e Mac quando lembram de Tiradentes e os vários
mitos que envolvem a sua figura, a presença de uma filha, até então também
desconhecida, e a sua imagem, com cabelos grandes e barba, associada à imagem
de Cristo, etc.
Mais adiante, em outra cena memorável e
engraçadíssima, o professor Simão, dando continuidade à narração da sua
descoberta, conta o encontro que teve com uma mulher jovem na Biblioteca
Nacional assim que descobrira que Machado de Assis tinha tido um filho.
Querendo compartilhar essa grande notícia com alguém, resolve contar para essa
moça. Ela se confunde sobre episódios da vida de Machado de Assis, e o diálogo
dos dois, outro argumento a respeito da idolatria e do quão essa pode levar a interpretações
por vezes desastrosas sobre a vida de alguém importante, é um dos momentos mais
hilários e interessantes da narrativa.
Vilela
extrai esses momentos humorísticos das relações humanas no diálogo encenado.
Por outro lado, há momentos em que o narrador da novela tenta criar humor em
situações um tanto forçadas, como é a cena do estalo dos dedos. Aqui, embora
pareça forçado, o bloco narrativo do tlec
(o estalo dos dedos) tem como função destacar a futilidade que permeia o mass media contemporâneo, futilidade que
se espalha pela sociedade ─ ou, ao contrário, que permeia a contemporaneidade e
é assumida e glorificada pela mídia.
A ideia da idolatria como um problema
que assola a sociedade continua a permear o discurso, disfarçado de diálogo, do
professor Simão, que insiste na história de Tiradentes; na sequência, o
professor fica preocupado com o que dissera à moça da Biblioteca, fica temeroso
de que ela espalhe a notícia, e que a grande novidade chegue ao mundo acadêmico
antes que ele mesmo a divulgue oficialmente. Luiz Vilela, agora pela voz do
professor Simão, faz uma dura crítica, que já havia feito em outras ocasiões e em
entrevistas, ao mundo acadêmico, acusando-o de hipocrisia: “Inveja, despeito,
ressentimento: esse é o feijão com arroz dessa gente. Vaidade é o ar que eles
respiram. Vaidade e falsidade. Longe dos rapapés e dos salamaleques, a
perfídia, a maledicência, a calúnia – a vontade, em suma, de aniquilar o outro.”
(p. 81).
O que parece escapar ao Prof. Simão
Serapião é que o motivo da crítica à academia é o mesmo temor que o move ao
esconder de Mac onde encontrou a notícia sobre o filho de Machado de Assis,
assim como é o mesmo motivo que o faz temer alguma inconfidência da moça da
Biblioteca Nacional: a vaidade, a vã glória de ser o autor da descoberta.
Simão, também professor acadêmico, não está acima nem é diferente daqueles a
que critica – como ele mesmo diria, “ninguém é santo”.
Com um final um tanto quanto
imprevisível, a novela termina por reforçar e retomar a “tese” inicial da
idolatria; para muitas pessoas, na verdade, o fato de uma figura pública e
importante ter escondido ou não que teve um filho não faz a menor diferença.
Como exclama a namorada do narrador quando este lhe diz que Machado de Assis
havia tido um filho: “E daí?” Se a pergunta da namorada demonstra, talvez,
desinteresse pelo assunto, a desimportância do tema, ainda que assuntos como
tais sejam dos mais explorados por jornais populares e revistas de fofocas,
temos aqui outro motivo recorrente da obra de Vilela: a alienação da mulher
quanto à informação, à formação básica, ao raciocínio lógico mais elementar.
Tratemos da linguagem em O
filho de Machado de Assis.
Segundo o professor Rauer Ribeiro
Rodrigues, em uma resenha sobre o romance Perdição, “A linguagem, em Luiz
Vilela, desde a obra de estreia, o volume de contos Tremor de terra,
de 1967, tem por característica a simplicidade vocabular, a seleção lexical de
exatidão expressiva, o registro coloquial, a ordem direta, as metáforas sem
rebuscamento, a profundidade do pensamento não sendo obscurecida por torneios
ou gongorismos” (veja aqui). Tais características se mantêm em O
Filho de Machado de Assis: a simplicidade vocabular, numa
linguagem cristalina, registros coloquiais, e até brincando com esses
registros, na voz de Mac, que o tempo todo corrige o professor para o
politicamente correto, “afrodescendente” ao invés de “preto”, entre outros
comentários. Predomina a ordem direta e metáforas sem rebuscamento. Tudo isso
ainda está lá, na escrita de Vilela. Porém, ao olharmos para as suas obras
anteriores, percebemos que Vilela se repete em algumas fórmulas narrativas,
encena a cena seguindo estratégias de contos, novelas ou romances anteriores,
como o começo e o fim com ares fortemente mecânicos, com um deus ex machina se impondo no cotidiano,
já vistos em outras narrativas – o discurso enunciado e a vida vivida se
impõem entre os clichês da própria vida e da enunciação anteriormente enunciada.
Em
suma, ao tratar, em O Filho de Machado de Assis, do tema da idolatria,
entrelaçando-a com temas candentes da sociedade brasileira, entre outros
assuntos contemporâneos aqui reiterados por Luiz Vilela e sempre presentes em
sua obra, a novela traz o mesmo autor de sempre, em suas obsessões, em suas
qualidades e em seu modo de narrar que se repete. Escritor sempre determinado a
buscar novos caminhos em sua práxis, O
Filho parece repetir passos de narrativas anteriores, como que
obediente a um pai autoritário. São passos divertidos e envolventes, é verdade,
mas que têm pouco do frescor que Vilela costuma projetar a cada nova
empreitada. Claro, há aspectos novos, nuances do inventor criativo na pena de
um mestre da escrita. A novidade em O filho de Machado de Assis está na
derrisão da idolatria, mais uma crítica feroz do Luiz Vilela iconoclasta de
sempre.
Rodrigo Andrade Pereira
Doutorando em Estudos Literários
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