Sempre se diz que o grande escritor brasileiro contemporâneo não existe. Se existisse, seria conhecido e exaltado por toda a gente. Sinceramente, o Brasil é grande e o funil é apertado. Novos autores têm dificuldade em conseguir ser publicados e outros, embora já rodados e cheios de adjetivos positivos, não chegam a “estourar” para o grande público – desses uns poucos viram cult. Esse último é o caso do mineiro Luiz Vilela, que descobri há bem pouco tempo, por indicação do escritor Marcelo Maluf.
“Tremor de terra” (editora Ática) foi o primeiro livro publicado por Vilela e já demonstra que ele era um escritor maduro. Os personagens são pessoas comuns, mas com histórias que marcam o leitor. Não, eu sei que a essa altura eu devia fugir desse tipo de clichê (“que marcam o leitor”, ora essa, nem parece jornalista!) como o vampiro do crucifixo, mas é que eu fui lendo, me divertindo, me surpreendendo com um texto após o outro e fiquei depois um bom tempo pensando nos dramas e aventuras dos personagens - confere com a definição de "marcar", né? rsrs E isso, acredito, é porque o autor sabe trabalhar a tensão em cada conto.
Em “Confissão”, um adolescente confessa ao padre que pecou por ter visto a vizinha dormindo de camisola, em “Júri”, o leitor acompanha uma panorâmica de um julgamento sob o ponto de vista de um dos jurados (o sujeito vê até o suor na careca do promotor de justiça); em “Um dia igual aos outros”, um personagem decide fazer um diário e revela sua perplexidade diante de um colega que diariamente chora no banheiro do escritório e ainda chora de porta aberta pra todo mundo ver.
A edição que li é de 1980 (sério, eu nem era projeto de gente nessa época) e comprei em um sebo. A diagramação é triste, evoca aqueles jornais antigos com o texto em duas colunas separadas por uma linha preta. Mas, era o que havia disponível porque o livro está esgotado nas editoras.
Abaixo a íntegra de um dos contos para vocês conhecerem (peguei o menorzinho mesmo porque nem todo mundo curte ler coisas longas na internet).
Dois homens
“Os dois homens estão sentados à mesa do bar. O mais novo deve ter uns trinta anos, é gordo, cabelo cortado baixo, camisa esporte. O outro, já velho, de cabeça branca, é magro e está de terno e gravata. Olhando bem, vê-se que tem traços comuns: devem ser pai e filho. Estão sentados um em frente ao outro. Na mesa, forrada de branco, há uma garrafa de cerveja vazia, e pratinhos sujos com talheres e guardanapos de papel embolados. Acabaram de comer há algum tempo. Depois disso devem ter palitado os dentes, o velho ocultando educadamente o palito com a outra mão, ou então, não tendo dentes, ficado a observar o filho palitando sem o recato com o que ele o teria feito; mas isso ele teria apenas observado, sem fazer qualquer reflexão, como, por exemplo, que os tempos mudaram e os costumes do seu filho não são mais os seus, e que ele está velho; não, ele não tem o ar melancólico de quem tivesse pensado essas coisas ou outras semelhantes que tivesse como causa o filho à sua frente; ele teria apenas observado, apenas olhado, como agora olha na direção da porta de entrada do bar sem que pareça estar pensando nela; na verdade é difícil imaginar o que ele está pensando, pois parece não estar pensando em nada – parece não estar pensando; e parece também não estar olhando para coisa alguma, apensa os seus olhos estão abertos e o seu rosto está voltado na direção da porta, mas não parece haver nada ligando-o à porta ou à outra coisa fora da porta. Há algum tempo já que ele está assim imóvel, sem fazer qualquer gesto, sem nada nele que se mexa. Em frente o filho, que depois de palitar e largar o palito no pratinho deve ter firmado o cotovelo na mesa segurando o queixo com a mão espalmada, e assim está até agora; é uma posição que se diria de cansaço ou tristeza, mas o rosto não expressa nada e ele também parece não estar olhando para nada e ele também parece não estar olhando para nada. Há talvez uns quinze minutos já que os dois estão assim, sentados um frente ao outro sem dizer nada e sem fazer nada. Sob a luz clara do bar, entre outras mesas cheias de gente, conversas, ruídos, dão a impressão de dois objetos sem nenhuma relação entre si e com o mundo ao redor, e que se acham ali por mero acaso, e que serão recolhidos com a garrafa, os copos e os pratinhos pelas mãos ágeis do garçom, que não vendo neles qualquer utilidade os lançará ao lixo.”
Mais – Achei essa entrevista do Luiz Vilela para o Itaú Cultural. Ele fala um pouco da sua carreira, seus livros e lê um trecho de uma de suas obras - é só por o dedinho aqui.
Ficha técnica:
“Tremor de terra”
Autor: Luiz Vilela
Preço: a partir de R$ 12,50 em lojas online
Tem em bibliotecas? Sim, em Sampa na Alceu Amoroso Lima, no Centro Cultural São Paulo, na Gilberto Freire, Helena Santos e Roberto Santos.
“Tremor de terra” (editora Ática) foi o primeiro livro publicado por Vilela e já demonstra que ele era um escritor maduro. Os personagens são pessoas comuns, mas com histórias que marcam o leitor. Não, eu sei que a essa altura eu devia fugir desse tipo de clichê (“que marcam o leitor”, ora essa, nem parece jornalista!) como o vampiro do crucifixo, mas é que eu fui lendo, me divertindo, me surpreendendo com um texto após o outro e fiquei depois um bom tempo pensando nos dramas e aventuras dos personagens - confere com a definição de "marcar", né? rsrs E isso, acredito, é porque o autor sabe trabalhar a tensão em cada conto.
Em “Confissão”, um adolescente confessa ao padre que pecou por ter visto a vizinha dormindo de camisola, em “Júri”, o leitor acompanha uma panorâmica de um julgamento sob o ponto de vista de um dos jurados (o sujeito vê até o suor na careca do promotor de justiça); em “Um dia igual aos outros”, um personagem decide fazer um diário e revela sua perplexidade diante de um colega que diariamente chora no banheiro do escritório e ainda chora de porta aberta pra todo mundo ver.
A edição que li é de 1980 (sério, eu nem era projeto de gente nessa época) e comprei em um sebo. A diagramação é triste, evoca aqueles jornais antigos com o texto em duas colunas separadas por uma linha preta. Mas, era o que havia disponível porque o livro está esgotado nas editoras.
Abaixo a íntegra de um dos contos para vocês conhecerem (peguei o menorzinho mesmo porque nem todo mundo curte ler coisas longas na internet).
Dois homens
“Os dois homens estão sentados à mesa do bar. O mais novo deve ter uns trinta anos, é gordo, cabelo cortado baixo, camisa esporte. O outro, já velho, de cabeça branca, é magro e está de terno e gravata. Olhando bem, vê-se que tem traços comuns: devem ser pai e filho. Estão sentados um em frente ao outro. Na mesa, forrada de branco, há uma garrafa de cerveja vazia, e pratinhos sujos com talheres e guardanapos de papel embolados. Acabaram de comer há algum tempo. Depois disso devem ter palitado os dentes, o velho ocultando educadamente o palito com a outra mão, ou então, não tendo dentes, ficado a observar o filho palitando sem o recato com o que ele o teria feito; mas isso ele teria apenas observado, sem fazer qualquer reflexão, como, por exemplo, que os tempos mudaram e os costumes do seu filho não são mais os seus, e que ele está velho; não, ele não tem o ar melancólico de quem tivesse pensado essas coisas ou outras semelhantes que tivesse como causa o filho à sua frente; ele teria apenas observado, apenas olhado, como agora olha na direção da porta de entrada do bar sem que pareça estar pensando nela; na verdade é difícil imaginar o que ele está pensando, pois parece não estar pensando em nada – parece não estar pensando; e parece também não estar olhando para coisa alguma, apensa os seus olhos estão abertos e o seu rosto está voltado na direção da porta, mas não parece haver nada ligando-o à porta ou à outra coisa fora da porta. Há algum tempo já que ele está assim imóvel, sem fazer qualquer gesto, sem nada nele que se mexa. Em frente o filho, que depois de palitar e largar o palito no pratinho deve ter firmado o cotovelo na mesa segurando o queixo com a mão espalmada, e assim está até agora; é uma posição que se diria de cansaço ou tristeza, mas o rosto não expressa nada e ele também parece não estar olhando para nada e ele também parece não estar olhando para nada. Há talvez uns quinze minutos já que os dois estão assim, sentados um frente ao outro sem dizer nada e sem fazer nada. Sob a luz clara do bar, entre outras mesas cheias de gente, conversas, ruídos, dão a impressão de dois objetos sem nenhuma relação entre si e com o mundo ao redor, e que se acham ali por mero acaso, e que serão recolhidos com a garrafa, os copos e os pratinhos pelas mãos ágeis do garçom, que não vendo neles qualquer utilidade os lançará ao lixo.”
Mais – Achei essa entrevista do Luiz Vilela para o Itaú Cultural. Ele fala um pouco da sua carreira, seus livros e lê um trecho de uma de suas obras - é só por o dedinho aqui.
Ficha técnica:
“Tremor de terra”
Autor: Luiz Vilela
Preço: a partir de R$ 12,50 em lojas online
Tem em bibliotecas? Sim, em Sampa na Alceu Amoroso Lima, no Centro Cultural São Paulo, na Gilberto Freire, Helena Santos e Roberto Santos.
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